Título: O Código do Consumidor e a classe médica
Autor: Antônio Ferreira Couto Filho
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Neste início de ano, mais precisamente em março, comemoraram-se os 15 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), gerado a partir da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, considerada a "Constituição Cidadã". Sua aprovação é quase unânime, afinal, a Lei nº 8.078, criada em 1990, equilibrou as relações de consumo, onde sempre o produtor representava o poder econômico, em detrimento do consumidor hipossuficiente. Isso, obviamente, beneficiou a grande maioria da população, pois, após o código, o consumidor, que antes tinha apenas um papel passivo, passou a ter acesso a informações sobre processos, benefícios e até dos danos causados por determinados produtos que consome. Mas, com todo o progresso trazido pelo CDC, há quem esteja sofrendo com a sua aplicação: a classe médica. Não é de hoje que apontamos a inadequação de se aplicar o Código de Defesa do Consumidor na relação médico-paciente. O segmento da saúde no Brasil foi pego de surpresa com a evolução da obrigação de reparar os danos causados a terceiros. O Poder Judiciário, no fim do século XX e início do XXI, a partir das conquistas sociais e da evolução dos direitos fundamentais, passou a contar com micro-sistemas protetivos, haja vista a defesa e proteção do consumidor. Mas, assim, gerou casuísmo e paternalismo sob a justificativa de ser uma lei desigual para tratar de desigualdades. E desigualdade é o que também há ao deixar a relação entre médicos e pacientes ser respaldada por um código que trata, objetivamente, de relações de consumo. Através de livros jurídicos e da promoção de seminários, congressos, simpósios, ciclo de debates, entre outros eventos, procuramos conscientizar a sociedade de que paciente não é consumidor. Sabemos que ainda somos andorinha e ainda não fazemos verão. Sabemos que ainda fazemos pouco barulho e que boa parte da sociedade ainda não nos ouve. Entretanto, o argumento de todos os doutrinadores do país é fazer valer o direito fundamental (inciso III do artigo 1º da Constituição), qual seja a dignidade da pessoa humana, com o qual concordamos em gênero, número e grau. E vamos além, ao lembrar que não se pode esquecer que o médico também é pessoa humana. O novo Código Civil brasileiro já caminhou mais na direção da ética, oferecendo inúmeros recursos para que se possa punir as partes e procuradores por desvios comportamentais. Mais uma vez é preciso lembrar que, segundo dados estatísticos apresentados pelo magistrado Miguel Kfouri Neto, na obra "Culpa Médica e Ônus da Prova", 80% das ações promovidas contra médicos são julgadas improcedentes. Essa estimativa é comprovada também no cotidiano de vários escritórios especializados em responsabilidade civil médica, no Brasil inteiro, mas, infelizmente, esse lado não é divulgado pela grande mídia. E o pior é que, mesmo ganhando a grande maioria das causas, os prejuízos que os médicos sofrem em sua carreira são incalculáveis. Repetimos que, lamentavelmente, copiou-se o modelo americano, gerando a indústria do dano, que se tornou uma realidade também brasileira.

-------------------------------------------------------------------------------- A relação entre médico e paciente é subordinada ao CDC mais por inércia do que por fundamentos técnico-jurídicos --------------------------------------------------------------------------------

Não se faz apologia ao chamado erro médico, pois, quando verificado no processo judicial, está submetido aos rigores do Código Civil, não necessitando dessa excessiva proteção consumerista, pois o médico é cidadão e consumidor tanto quanto o paciente. Há maus profissionais em qualquer área do mercado de trabalho, mas é preciso separar o joio do trigo. Há pouco mais de dois anos, por exemplo, os advogados passaram a contar a seu favor com uma decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde o relator do caso, ministro César Asfor Rocha, declarou que a relação advogado-cliente não está subordinada ao Código de Defesa do Consumidor. A decisão sustenta que não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei nº 8.906, de 1994, seja por não ser uma atividade fornecida no mercado de consumo. Dessa forma, fica fácil entender que a relação médico-paciente está subordinada ao CDC muito mais por inércia do segmento do que por fundamentos técnico-jurídicos. A classe médica precisa cada vez mais se mobilizar para exigir que se proclame a exclusão dessa subordinação injusta, uma vez que os mesmos fundamentos utilizados para os advogados, por razões óbvias, podem e devem ser adotados aos médicos, tendo em vista tratar-se de profissão liberal autônoma, ajustando-se às pretensões dos médicos. O início da constituição de uma comissão mista dentro da Frente Parlamentar de Saúde, formada por médicos, advogados e parlamentares, se faz necessária para definitivamente estabelecer um lugar de destaque para o segmento, através do pretendido Código Nacional de Saúde. Aliás, essa proposta já se encontra no Congresso Nacional há algum tempo, onde alguns parlamentares já estudam tal possibilidade. Paulatinamente estamos avançando e não podemos e nem desistiremos do nosso objetivo principal, que é implantar um código baseado primordialmente na ética, organizando o segmento saúde no Brasil. O Código de Defesa do Consumidor merece os nossos parabéns pelos os seus 15 anos de vigência, mas a saúde dos médicos continua sofrendo.

Antônio Ferreira Couto Filho é presidente da Comissão de Biodireito do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB) e consultor jurídico do Colégio Brasileiro de Cirurgiões