Título: A revisão global da Constituição Federal
Autor: Andréia Fernandes Coura
Fonte: Valor Econômico, 28/04/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 157, de 2003, para a convocação de uma assembléia para o ano de 2007, com o objetivo de fazer uma revisão constitucional global e constante a cada dez anos. Argumentando que mais de 50 emendas impuseram limites aos poderes públicos, a Constituição Federal teria se tornado um instrumento de ingovernabilidade, exigindo uma reforma ampla.

É importante esclarecer que, hoje, alterações são feitas por emendas constitucionais, reformas pontuais de competência do Congresso Nacional, por meio de discussão e votação da proposta na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e a aprovação por maioria qualificada (três quintos dos membros respectivos de cada casa) em dois turnos, procedimento bem mais rígido do que o exigido para aprovação de leis.

O procedimento dificultado é a garantia de vigência efetiva da lei maior e impõe-se como limite absoluto ao poder de reforma, já que se trata de poder autorizado originalmente pelo povo quando da elaboração e promulgação da Constituição Federal. Já a revisão constitucional é uma reforma ampla e sistemática e foi autorizada uma só vez, no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o que já ocorreu, em 1994. Não há qualquer outra autorização para a realização de reformas amplas. Ainda que a proposta de revisão constitucional traga a exigência de submissão do seu conteúdo ao povo, trata-se de um projeto que insere na Constituição Federal um dispositivo que permite a sua própria morte, o que é inadmissível.

Com a promulgação da atual Constituição Federal em 1988, povo e governo se obrigaram a observar os comandos constitucionais e revisões amplas não são permitidas, como já foi explicado. É claro que o povo, como titular de todo o poder, pode elaborar nova Constituição, mas não há qualquer reclamo popular nesse sentido. Vê-se, pelo contrário, o desejo de seu cumprimento, pois nesse documento jurídico estão retratados valores consagrados pela sociedade, cuja efetivação é desejada.

-------------------------------------------------------------------------------- É necessário que se construa no mundo real as condições para que a Constituição não seja uma mera folha de papel --------------------------------------------------------------------------------

A lei maior contém o destino social projetado. Daí a imposição constitucional de tarefas que devem ser realizadas pelos poderes públicos para que o plano global de Estado e sociedade possa ser concretizado. Lembrando as palavras do antropólogo Darcy Ribeiro, o povo brasileiro é retrato de uma comunidade que até hoje serve a interesses alheios opostos aos seus, uma massa de trabalhadores explorados, humilhados por minorias dominantes, mas também um povo aberto para o futuro, alegre e com espantosa vontade de felicidade. Pretende-se um povo plenamente desenvolvido, no aspecto material, ético e emocional. É imperioso, para tanto, construir um Estado que garanta o pleno desenvolvimento da pessoa humana, em todas as suas dimensões, através da educação para a cidadania, para o trabalho, para o respeito ao meio ambiente, para a ética.

É por isso que a Constituição Federal enuncia como fundamentos do Estado brasileiro a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, que tem por fins a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos, garantindo-se o desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e regionais.

Para a realização desses fins, a Constituição Federal define tarefas, estabelece programas e não regulou tudo. Seus dispositivos contêm normas cujo grau de abstração necessita da mediação dos poderes públicos para a sua implementação, deixando espaço para a necessária ação política.

Lassale, advogado alemão (1825-1863), disse que se a Constituição escrita não corresponder aos anseios reais do povo, será apenas uma folha de papel, sucumbida a forças escusas. É necessário, assim, que se construa no mundo real as condições para que a nossa Constituição não seja uma mera folha de papel. O projeto de vida comunitário nela previsto precisa concretizar-se. Em nada contribui para isso as constantes modificações no seu texto, o qual precisa apenas ser cumprido. Deixem a Constituição em paz!

Andréia Fernandes Coura é advogada especialista em direito constitucional, sócia do escritório Ibaixe & Neres Advogados Associados e vice-presidente do Centro de Estudos sobre Problemas do Estado (Cenepe)