Título: Um trabalhismo nem tão distante
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2006, Política, p. A8

A chegada do PT ao poder não jogou por terra apenas o seu discurso moral. A união dos sindicalistas com a esquerda pragmática derrubou de forma implacável o mito de que o partido inaugurava um novo estilo de relação com o poder público, radicalmente diferente do único partido antes dele que se dizia representativo dos trabalhadores e sobreviveu e prosperou no quadro institucional, o PTB de Vargas. Seu braço sindical, a CUT, dizia o mito, teria passado uma borracha sobre a herança sindical do getulismo, conseguindo impor-se de forma quase hegemônica sobre uma estrutura sindical "pelega"; seu braço político, o PT, faria a faxina nas relações corporativistas entre grupos de interesse e o Estado, desprivatizando-o. O cruzamento desses dois fracassos, ou dois processos de "institucionalização" interna, pode ter aproximado o PT e a CUT muito mais do PTB de Vargas e da esquerda tradicional do que ambos possam admitir. Na verdade, nem um, nem outro, escapou da inevitável herança do varguismo ou dos vícios da esquerda tradicional brasileira. Fugir dessa influência exigiria mais clareza e menos adesão ao pragmatismo.

No sindicalismo, houve dois momentos da tomada do poder que estava nas mãos dos "pelegos", nos anos 80. O primeiro foi a mobilização que levou à direção dos maiores e mais importantes sindicatos operários a oposição sindical, mais tarde tornada CUT. O outro foi a conquista da máquina. O peleguismo estava montado numa enorme estrutura burocrática, que o manteve por décadas no poder pelo voto de clientela. Eram máquinas assistenciais voltadas para aquele público votante que apoiava a direção. A oposição sindical teve trabalho para ganhar eleições - e as ganhou apesar das fraudes eleitorais e das manobras extra-sindicais em favor dos pelegos, em especial originárias do poder regulatório do Ministério do Trabalho. Depois que as ganhou, os neodirigentes tiveram que enfrentar a burocracia montada pelos antecessores. Para isso, reproduziram prática da esquerda tradicional que abominavam, de "aparelhar" sindicatos e reverter a máquina em seu favor.

É complicado definir em que momento os "sindicalistas" e o grupo de esquerda com origem na luta armada mantiveram identidades próprias dentro do PT, mas disso resultou o famoso Campo Majoritário. E não há como negar que, apesar de todo esforço para separar CUT e partido, ambos se alimentaram. A CUT unia as facções petistas nas lutas sindicais e, com o passar do tempo, foram os quadros vindos do sindicalismo que alimentaram o PT. Houve, sem dúvida, uma convergência entre essas militâncias. O pragmatismo as uniu. Com o arrefecimento das lutas propriamente operárias, emergiu um sindicalismo ligado ao servidor público já com fortes vínculos com o PT e, simultaneamente, aumentou também o peso dos grandes sindicatos do setor de serviços, como os de bancários, na central. O perfil sindical da CUT mudou. Ela desproletarizou-se e supriu o partido com esses novos quadros.


Poder sobre a burocracia não suprime a luta política

Do ponto de vista "republicano", isso criou complicações adicionais para o PT no poder, quer pelas heranças que inevitavelmente traria da esquerda tradicional e do velho sindicalismo (afinal, o partido não foi constituído em Marte, mas está inserido na história, e isso não é necessariamente ruim), quer pela confusão que se instalou entre uma militância petista/cutista dentro do aparelho de Estado e a burocracia estatal. Ele levou para dentro da burocracia estatal a sua própria máquina, dentro da lógica anti-pelega de ocupar todos os espaços da administração para que "inimigos" não a usem em proveito próprio. Do lado de fora, submeteu a CUT às razões de governo, afastando-a das lutas sindicais mais combativas - e, em conseqüência, distanciou-a das bases do funcionalismo. O PT do governo acabou entendendo que a CUT era a extensão sua na sociedade e que isso legitimava a ocupação da máquina burocrática pelo partido. Deu no que deu.

Mais forte do que a CUT, no entanto, é a ideologia própria que move a burocracia estatal. Sua tendência é a de expelir corpos estranhos - até porque hoje ela é profissionalizada e a ocupação de postos até o quarto escalão, pelo PT, reduziu substancialmente as possibilidades de ascensão funcional. Além de ter feito uma lambança enorme nas suas relações com o Estado, que havia prometido desprivatizar, o PT não apenas se aproximou das práticas do antigo PTB, que se movia e se expandia usando de suas relações com o Estado, como criou uma fonte de atrito que não precisaria ter criado.

Tanto esse é um equívoco partidário que o deputado João Paulo Cunha, na presidência da Câmara, fez a mesma política de tomar as posições estratégicas da burocracia legislativa. Funções de chefia foram dadas a petistas não necessariamente, entendidos do assunto, em setores eminentemente técnicos. Os funcionários foram mantidos sob uma vigilância que a maioria deles considerou indesculpável. Na eleição para a mesa seguinte, os funcionários aplaudiram e comemoraram a eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) contra o petista Luiz Eduardo Greenhalgh. Não foi simpatia por Severino, mas aversão à política de ocupação do PT.

A estratégia de manter-se no poder ocupando a máquina não teve, na política, a mesma eficiência obtida no mundo sindical. O PT superestimou o poder de barganha que a máquina lhe traria no Legislativo e acabou criando áreas de atrito incontornáveis. Existem redutos burocráticos que são também redutos de um pensamento conservador, que nem todo aparelhismo do mundo muda - até porque funcionários públicos têm estabilidade. O PT não entra, por exemplo, nem na burocracia militar, nem na de informações e muito menos na burocracia policial. Não há hipótese. Nesse caso, o aparelhismo só reforça o conservadorismo. E o poder de cooptação dos outros ministérios é muito menor do que o PT supôs. E, fundamentalmente, em algum momento o partido achou que a briga por posições no aparelho burocrático suprimia a luta ideológica. Errou feio. E, além de ter consagrado como prática o aparelhismo da antiga esquerda, conseguiu chegar bem perto das relações do trabalhismo com o governo na Era Vargas.