Título: A ópera dos bufões
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2006, Brasil, p. A15

Ópera bufa. Assim pode ser classificado o espetáculo que o Congresso Nacional ofereceu à nação, esta semana, no embate com o Executivo em torno da aprovação - tardia, registre-se - do Orçamento da União de 2006.

As demonstrações explícitas da aparente briga por dinheiro retratam bem a complicada relação entre os poderes constituídos da República e que costuma aflorar em anos de eleição.

Por detrás das encenações e do enredo grotesco há, porém, uma insustentável realidade que toma a forma de várias facetas, tendo sempre como pano de fundo a disputa política pelo poder. As verdades a considerar são muitas, muito embora poucos estejam antenados para isso.

A primeira verdade: tende a cair no campo das ilusões as reivindicações dos congressistas que mediram forças com o Executivo nas últimas semanas e que conseguiram emplacar projetos de seu interesse no rol das despesas de 2006 em troca do voto favorável à aprovação do Orçamento.

O senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) ganhou com certeza mais prestígio junto ao seu eleitorado depois da verba que conseguiu garantir no Orçamento, à última hora, para a construção de um gasoduto no seu Estado. Do mesmo modo, o senador Antonio Carlos Magalhães fica ainda mais popularizado no Nordeste depois de ter incluído no Orçamento um projeto de irrigação.

Ao todo, foram R$ 15,6 bilhões adicionais introduzidos na lista de gastos por pressão dos parlamentares que ameaçavam não aprovar o Orçamento.

Mas, no jogo do faz-de-conta, tanto o senador Arthur Virgílio quanto o senador Antonio Carlos Magalhães sabem que dificilmente os recursos de seus projetos serão liberados este ano pelo Tesouro Nacional. Tendem a ficar no papel, como aliás estão muitos outros projetos de interesse até de ministros de Estado.

Isso porque se adota no país o sistema do orçamento autorizativo, pelo qual o Poder Executivo pode, a seu critério, deixar de cumprir com as liberações de verbas ainda que previstas na peça orçamentária. O governo é discricionário. Maneja os recursos do Orçamento da forma que mais lhe convém, seja para atender a projetos e programas de seu interesse, seja para cumprir as metas estabelecidas para o desempenho fiscal.

-------------------------------------------------------------------------------- Enquanto o Executivo atua de forma paternalista, o país fica cada vez mais espantado quando descobre os rumos escusos dos recursos públicos --------------------------------------------------------------------------------

A segunda verdade: tudo isso acontece à margem do que preconiza a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em 2000, mas ainda não totalmente regulamentada em vários de seus dispositivos.

Por exemplo, o artigo 9º da LRF prevê mecanismos de contingenciamento do orçamento que não são contemplados pelo Executivo. Estão amarrados ao artigo 8º da mesma lei, que prevê um sistema de gerenciamento de gastos através da programação financeira que compara, a cada dois meses, aquilo que foi arrecadado com aquilo que estava previsto gastar. Daí se deveria extrair um relatório resumido da execução orçamentária em linguagem simples e compreensível a todos os brasileiros que são, no frigir dos ovos, os "donos" do dinheiro que o setor público arrecada na forma de taxas e impostos.

A intenção da LRF é de que a programação financeira bimestral funcione como espécie de base para o demonstrativo de eventuais descompassos entre receitas e despesas, a partir do qual se faria o contingenciamento para o ajuste nos dois meses seguintes, de modo a que se possa chegar ao final do exercício com as metas fiscais cumpridas.

Mas nada disso é observado. O Poder Executivo fica com a faca e o queijo na mão. "O governo faz o contingenciamento preventivo, travando todas as despesas possíveis no início do exercício fiscal para soltar a partir de setembro, quando já não dá para cumprir com as exigências legais de licitação e contratação", avalia a assessora de Política Fiscal e Orçamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Selene Peres Peres Nunes.

Na opinião dela, que trabalhou na redação da LRF, a prática de hoje só faz atrapalhar a gestão pública porque funciona com viés antiinvestimento e pró-despesas correntes, além de colocar excessivo poder político na mão do Poder Executivo. Os interesses e pleitos dos deputados e senadores ficam totalmente dependentes da boa vontade do presidente da República e de seu governo, que usam desse poder para barganhar com o Congresso Nacional a aprovação das medidas e projetos de interesse do Executivo.

"Caminhou-se no sentido da fragilização das relações entre os poderes da República", nota Selene Nunes, chamando atenção para um outro aspecto desse complexo quadro. É que, por conta da tendência do Executivo de manter sob seu absoluto controle o manejo da execução orçamentária, sem prestar maiores esclarecimentos à sociedade, acabou caindo no esquecimento uma outra recomendação da LFR: a de criação do Conselho de Gestão Fiscal, que seria justamente encarregado de elaborar uma versão simplificada e de fácil entendimento do relatório para acompanhamento das contas do orçamento.

Enquanto o Poder Executivo continua atuando de forma paternalista, decidindo onde e quando deve ser gasto o dinheiro que arrecada avidamente da sociedade, sem dar maiores satisfações a ninguém, fica o país cada vez mais espantado quando descobre os rumos muitas vezes escusos que toma os recursos públicos.

A terceira verdade: é falsa a assertiva do ajuste fiscal cantado em verso e prosa na forma do resultado do superávit fiscal primário como supremo indicador do ajuste das contas públicas. Nada mais equivocado do que isso!

O superávit fiscal primário serviu todos esses anos para camuflar uma verdade que agora se revela inexorável: a de que todo o "esforço fiscal" aplaudido pelo FMI, pelo mercado, pelos empresários e pelos investidores internacionais, nada mais significa do que uma grande mordida do governo sobre a renda privada, que no ano passado desviou quase 40% do PIB da receita de sua atividade para sustentar os gastos desenfreados do setor público, incluindo as despesas com juros inexplicavelmente altos para um padrão de "ajuste" que se quer vender como verdadeiro.

E, mais assustador, tudo isso acontece em ambiente de plena estabilidade, o que prova que a ficção orçamentária se escondia por detrás da alta inflação. Levantado o véu lá se vão 11 anos, o que se vê são práticas políticas espúrias alimentadas pela prepotência fiscal do Executivo que tudo pode e nada explica. Nesta ópera, os bufões somos todos nós, os brasileiros.