Título: Itália de volta à paralisia política
Autor: Guido Tabellini
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2006, Valor, p. A15

Há mais de uma década, a Itália vem sendo governada por um sistema político bipolar. Os eleitores podiam escolher entre uma coalizão de esquerda e uma coalizão de direita. Aqueles desapontados com o governo corrente podia votar na oposição. E a existência de uma alternativa viável teve um efeito disciplinador sobre os político: não por acaso, o governo de Silvio Berlusconi exerceu o poder até o fim de seu mandato.

Isso contrasta nitidamente com a tradição política italiana. Na era do pós-guerra até o início da década de 90, os governos italianos sobreviveram em média menos de um ano. Os eleitores não podiam escolher entre manter um grupo no poder ou votar na oposição porque os mesmos partidos centristas mantinham-se o tempo todo no poder. As crises de governo eram simplesmente uma oportunidade para reorganizar posições-chave no gabinete ministerial ou alternar entre facções do partido do primeiro-ministro.

Entretanto, hoje há um risco elevado de que os políticos italianos retornem a seus velhos hábitos. Isso pode parecer estranho, em face do antagonismo entre Romano Prodi e Silvio Berlusconi durante a campanha eleitoral. Mas esse antagonismo refletiu não apenas a personalização da política estabelecida por Berlusconi, mas também uma regra institucional por ele abolida. Um dos últimos atos de seu governo foi substituir o sistema eleitoral majoritário, adotado em 1993, pelo regime proporcional. O novo sistema eleitoral modifica a motivação dos políticos e poderá induzir um retorno à alternância de coalizões e de governos instáveis. Esse cenário será instalado mais rapidamente se, como é provável, o próprio Berlusconi distanciar-se da política na próxima disputa eleitoral.

Sob as novas regras eleitorais, as cadeiras são alocadas aos partidos na proporção de sua votação, mas uma disposição especial induz os partidos a forjar acordos pré-eleitorais: a coalizão pré-eleitoral que receber a maioria dos votos obtém uma cadeira extra que lhe assegura confortável maioria na Câmara de Deputados (a casa baixa do Parlamento). Infelizmente, a nova legislação - aprovada às pressas no último minuto da legislatura anterior - tem uma formulação tola que não assegura uma maioria igualmente segura no Senado. Por isso, Prodi obteve uma ampla margem na Câmara, mas tem apenas um punhado de votos extras no Senado. Em vista do quase perfeito bicameralismo italiano, isso significa que o novo governo terá muita dificuldade para funcionar, mesmo sob circunstâncias ideais.

Mas a conjuntura italiana é longe de ideal. O novo governo enfrentará enormes problemas. O déficit orçamentário está novamente fora de controle, e bem acima de 3% do Produto Interno Bruto (PIB), teto estabelecido pelo Tratado de Maastricht. O envelhecimento da população está pressionado os sistemas públicos de aposentadoria e de saúde além de um patamar de sustentabilidade. O setor industrial, pressionado pela estagnação da produtividade e pela concorrência da China e de outros produtores baratos, já deixou der ser competitiva. Muitos serviços continuam ineficientes, porque estão na esfera de uma administração pública arcaica ou gozam de rendas monopolistas resultantes de barreiras criadas por agências regulamentadoras.

-------------------------------------------------------------------------------- Coalizão esquerdista de Prodi é um saco de gatos de partidos pertencentes a todo o espectro político, que abriga desde os comunistas até os ex-liberais --------------------------------------------------------------------------------

Inação simplesmente não é uma opção para o novo governo. No entanto, acordos sobre praticamente tudo o que é relevante serão muito difíceis. A Unione, coalizão esquerdista de Prodi, compreende um saco de gatos de partidos pertencentes a todo o espectro político, envolvendo de ferrenhos comunistas a ex-liberais (sendo que os comunistas estão mais fortalecidos do que na eleição anterior). De acordo com o novo sistema eleitoral, todos esses partidos estarão competindo entre si pelos mesmos votos, e cada um deles buscará proteger sua própria clientela ou reivindicar crédito por qualquer conquista que seja alcançada. Tendo em vista a estreitíssima maioria do Unione na casa alta do Congresso, o resultado mais provável é paralisia.

Como se isso não fosse suficiente, Prodi irá defrontar-se com outro problema. Pouco antes de deixar o poder, o governo de Berlusconi também aprovou uma reforma constitucional que, entre outras outras coisas, estabeleceu um complemento lógico ao novo sistema eleitoral. Em especial, a nova Constituição fortalece os poderes do primeiro-ministro e lhe outorga poderes para antecipar uma convocação de eleições em caso de uma crise governamental. Essa cláusula seria uma arma importante nas mãos de Prodi. Mas os de partidos de esquerda que o apóiam já anunciaram que irão barrar uma reforma constitucional, à qual se opõem por outras razões. Por esse motivo, quase certamente Prodi não disporá de seu melhor instrumento para impor ordem à sua indisciplinada coalizão.

O que provavelmente acontece quando uma coalizão grande e heterogênea, com estreita maioria parlamentar, precisa governar em meio a uma situação econômica cada vez mais sombria? A resposta é quase óbvia: o governo cairá ou tentará roubar membros de partidos de oposição. Qual desses dois desfechos acontecerá também depende do que acontecer no âmbito do campo de Berlusconi, e isso é menos fácil de prever.

Seja como for, porém, é improvável que o sistema político bipolar ao qual os italianos estavam ficando acostumados venha a sobreviver incólume. Ficará mais fácil para políticos oportunistas transpor o fosso entre a esquerda e a direita, e talvez surja um novo partido centrista. Em conseqüência, a Itália em breve retornará à sua antiga tradição de governos de vida curta e coalizões instáveis.

Prodi, naturalmente, poderia preservar um sistema político bipolar - e assim dilatar a longevidade de seu governo - seja restabelecendo um sistema eleitoral majoritário ou pressionando por outras emendas constitucionais concebidas para preservar o governo e a estabilidade da coalizão. No entanto, pressionar para que os parceiros em sua coalizão promovam tais mudanças poderá ser tão difícil, para Prodi, quanto os desafiadores problemas econômicos italianos.