Título: Desequilíbrio econômico ou uma mera questão contábil?
Autor: Ian Cao
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2006, Eu &, p. D2
Em novembro do ano passado, dois economistas, Hausmann e Sturzenegger, publicaram um artigo sobre a situação da conta corrente americana contrariando a visão dominante de que uma substancial desvalorização do dólar será necessária para corrigir o desequilíbrio em curso e trazer o déficit para um nível sustentável de longo prazo.
A motivação inicial do artigo era explicar um aparente paradoxo: em 1980, os EUA tinham um posição líquida de ativos externos de aproximadamente US$ 360 bilhões e de receitas externas líquidas de US$ 30 bilhões. Entre 1980 e 2004, os EUA incorreram em déficits de conta corrente acumulados de US$ 4,5 trilhões levando-os a uma posição líquida de US$ 2,5 trilhões negativos (descontando o ganho de capital líquido de US$ 1,6 trilhões) e, ainda assim, a receita externa líquida manteve-se em US$ 30 bilhões.
Segundo os autores, a explicação é a imperfeição da metodologia contábil de contas internacionais que não é eficiente o bastante para capturar o comércio de certas formas intangíveis de bens. Assim, bens que deveriam ser contabilizados como exportações, reduzindo o déficit em conta corrente, são computados na conta de capital. Em uma tentativa de quantificar o valor de tais bens, é arbitrado um múltiplo de Preço/Lucro igual a 20, ou seja, o valor real da posição líquida de ativos externos americanos seria 20 vezes a receita líquida externa ou US$ 600 bilhões positivos e não os US$ 2,5 trilhões negativos segundo a estimativa oficial.
A diferença entre as duas medidas, de US$ 3,1 trilhões, seria o volume de bens contabilizados erroneamente. Tais bens seriam principalmente: liquidez, segurança e conhecimento. A senhoriagem sobre o volume de moeda americana detido por estrangeiros é um exemplo: ao possuir dólares, devido a sua liquidez e segurança singulares, os estrangeiros estão concedendo um empréstimo sem juros para os EUA que podem obter retorno positivo com tal empréstimo. A segurança também implica em uma taxa de financiamento da dívida menor para os EUA do que para o resto do mundo, possibilitando-lhes um retorno maior ao comprar títulos da dívida de outros países, inclusive emergentes, do que aos estrangeiros quando compram títulos americanos.
Há ainda evidência de que os investimentos diretos realizados pelos EUA no exterior obtém uma taxa de retorno substancialmente melhor do que os investimentos realizados nos EUA por estrangeiros, possível resultado do intangível "know-how" americano. Caso a avaliação esteja correta e o desequilíbrio americano seja apenas produto de contabilização imperfeita, é possível que o tão temido ajuste da conta corrente dos EUA, via desvalorização cambial, jamais ocorra.
Ao examinarmos detalhadamente os pontos levantados no artigo, no entanto, chegamos a conclusão bem menos otimista.
A receita de senhoriagem obtida pelos EUA (supondo uma taxa de investimento de 5% ao ano e que 75% da moeda americana esteja no exterior) seria de aproximadamente US$ 26 bilhões, o que utilizando-se o múltiplo Preço/Lucro de 20, implica em um valor para o ativo que a originou de cerca de apenas US$ 500 bilhões.
Quanto ao fato de os EUA ganharem mais em suas aplicações em títulos no exterior do que os estrangeiros ganham aplicando nos EUA, isto não leva em conta o retorno ajustado ao risco que em mercados eficientes deve ser equilibrado. No que diz respeito ao "know-how" - suposto responsável pelas taxas elevadas de retorno dos investimentos diretos realizados pelos EUA no exterior -, estudos mostram que tal retorno resulta, na verdade, de um conjunto de circunstâncias frágeis quanto a sustentabilidade no longo prazo.
Primeiramente, os americanos investem há mais tempo no exterior e, portanto, tais investimentos já estão em fase madura, sem os altos custos envolvidos nas fases iniciais dos projetos. Outro ponto: possivelmente, multinacionais americanas reconhecem lucros em subsidiárias estrangeiras de forma a aproveitar tarifas de impostos mais baratas, distorcendo a medida de retorno do investimento direto no exterior.
Não há dúvida que existem bens intangíveis sendo exportados pelos Estados Unidos e que poderiam de alguma forma ser contabilizados nas medidas de conta corrente. No entanto, ao quantificá-los e verificar que em grande parte não resultam de vantagens estruturais da economia americana e tendem a diluir-se no futuro, não apresentam evidência suficientemente robusta para o quadro otimista sugerido pelos dois autores. Dessa forma, parece muito improvável que o ajuste da conta corrente americana não exija uma substancial desvalorização cambial.
Ian Cao é gestor de renda variável da Icatu Hartford
E-mail icao@icatuhartford.com.br
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