Título: Meu rei nu
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 02/12/2004, Brasil, p. A-2

Li seu artigo sobre Celso Furtado no Valor (29/11) e me ocorreu que talvez o senhor leia a página 2. Quiçá o senhor se lembre que, no final de janeiro de 1997, participamos de um encontro a 80 km da cidade do México, em Tepoztlán, antigo vilarejo índio de vistas espetaculares, hoje dividido entre os casebres dos pobres e as mansões emparedadas dos endinheirados. Era uma reunião de gente dedicada à política na América Latina. Do Brasil: o senhor, Tarso Genro, Leonel Brizola, Ciro Gomes, José Dirceu, Marco Aurélio Garcia. Do México: Vicente Fox, de chapelão e botas, Cuauhtemóc Cárdenas e Andrés Manuel López Obrador. Da Argentina: a senadora Graciela Fernández Meijide. Mais políticos do Chile e de outros latinos. Os únicos intelectuais presentes deveriam ter sido os dois organizadores (Jorge Castañeda e Roberto Mangabeira Unger) e nunca entendi por que fui convidada. Bom. Quem financiou o encontro foi a Fundação Ford, que exige a participação de mulheres nos projetos que financia. E, talvez, Castañeda e Mangabeira Unger se interessassem pelas críticas de uma economista. O fato é que tive dois dias para observar o senhor de perto e gostei do que vi - da atenção com que escutava as intervenções e as digeria e das respostas que revelavam uma reflexão sem preconceitos. Nos anos seguintes, observei as metamorfoses que desnudaram pouco a pouco o Lula essencial: o homem pragmático, conciliador e sabedor do que quer. O homem que João Moreira Salles captou tão bem em "Entreatos". O rei que se envaidece da gravata bonita, mas não se esconde por trás de disfarces. Hoje, quero contar-lhe a história de um outro rei. Permita-me: era uma vez rei Lear. Ele decidiu distribuir seu reino entre suas três filhas. Cada uma receberia uma parte de acordo com o amor que declarasse a ele. As duas mais velhas capricharam no discurso e bajularam o rei a valer. Cordélia, a mais nova, a verdadeira, incapaz de exibir seu coração em praça pública, disse apenas que o amava com amor filial: nem mais nem menos. O rei, indignado, deserdou Cordélia. As duas irmãs mais velhas perceberam a tolice do pai, fizeram intrigas e o abandonaram: mendigo, exilado em sua própria terra. Não acredito que esse será o destino do meu presidente. Afinal, a Cordélia de hoje toma conta das finanças do país. As filhas intrigantes, contudo, continuam abrigadas sob o teto do governo. O senhor deve perceber que elas têm pouca visão. Pois não lhe mostraram o erro na decisão de expulsar o jornalista Larry Rohter e preferiram a adulação. Fazem pior: andam por aí a indispor o povo contra o rei e inventam erros onde não existem.

Queda do dólar frente ao euro tem nos ajudado

Essa gente nega que haja qualquer progresso, porque as taxas de juros continuam altas. Quer o controle dos fluxos de capital, mais subsídios para as empresas nacionais e redução do superávit primário. Finge não entender que, se o governo gastar mais, terá de subir ainda mais as taxas de juros. É inegável que houve progresso, apesar de alguns erros monumentais que terão de ser corrigidos: as falhas no programa social, casos de corrupção e tráfico de influência, o fracasso nas negociações comerciais e a tolerância para com a agitação no campo. Por último, comento um argumento comum no mercado financeiro, que diz que as taxas de juros altas seriam necessárias porque a agenda microeconômica não avançou: não houve definição das regras de funcionamento das agências reguladoras e dos setores de infra-estrutura, nem aprovação da lei de falências, nem aceleração das reformas tributária e trabalhista. Esse argumento merece um reparo. Apesar da importância inegável do marco institucional, o contexto internacional e a situação fiscal costumam impor com força maior a taxa de juros e o comportamento do câmbio. Isso tem conseqüências sobre o nosso destino. Por exemplo, por trás das experiências de crescimento sustentado no resto do mundo existe uma taxa de câmbio "real" competitiva e mais ou menos estável. A palavra "real" é importante. Não adianta desvalorizar o câmbio se os preços sobem em seguida e desmancham a desvalorização nominal. O que permitiu que a taxa de câmbio real se mantivesse competitiva na Coréia do Sul entre 1965 e 1995 ou no Chile depois de 1985 foi a combinação de uma política fiscal apertada com uma taxa de juros real baixa. Essa combinação nos faz falta. Nosso superávit primário - derivado de pesada carga tributária - não cobre os pagamentos de juros. É pequeno em relação ao que seria necessário para reduzir a participação do setor público no produto e permitir um corte da taxa Selic. Uma taxa Selic real mais baixa contribuiria para uma posição fiscal mais saudável e evitaria a apreciação cambial. A desvalorização do dólar em relação ao euro tem nos ajudado, mas os Estados Unidos ainda são nosso parceiro comercial mais importante e não nos convém um câmbio bilateral trabalhando contra nossas exportações. Na semana passada, o Tesouro anunciou que ia comprar dólares. Depois disse que o gasto já fora programado antes. O senhor disse que queria o câmbio entre R$ 2,90 e R$ 3,10. E nesta terça-feira, o Meirelles disse que não tinha nada disso. Não haverá intervenção. Acho bom mesmo que não haja intervenção, pois ela tem um custo fiscal e a regra de ouro no momento é cortar gastos públicos. Mas seria melhor ainda se o senhor, a turma da Fazenda e a do Banco Central evitassem as contradições. Elas alimentam as filhas intrigantes, criam incerteza e prejudicam o investimento. Chega de críticas. Sem dúvida, o vento externo tem soprado a favor. Mas a política econômica ajudou e o sucesso de 2004 foi de arromba: crescimento de 5% com queda da taxa de inflação, superávit primário acima de 4% do PIB e um saldo comercial recorde. Vale um forró.