Título: Mitos e equívocos de Chernobyl
Autor: Kalman Mizsei e Louisa Vinton
Fonte: Valor Econômico, 18/04/2006, Opinião, p. A15

O 20º aniversário do acidente nuclear de Chernobyl, de 26 de abril de 1986, está produzindo uma nova onda de alegações alarmistas referentes ao seu impacto sobre as condições sanitárias humanas e o meio ambiente. Como já é praxe nesse tipo de evento comemorativo, a contagem dos mortos está na casa das centenas de milhares e novas reportagens são produzidas sobre os elevados índices de câncer, os defeitos congênitos e a taxa de mortalidade geral.

Este quadro está completamente distorcido e é também prejudicial às vítimas do acidente de Chernobyl. Todos os estudos científicos respeitáveis realizados até agora concluíram que o impacto da radiação foi menos nocivo do que se temia. Algumas poucas dezenas de trabalhadores dos serviços de emergência que combateram o incêndio no reator sucumbiram a graves doenças de radiação. Estudos ainda estão em andamento para apurar os elevados índices de enfermidades cancerígenas e cardiovasculares constatadas nos meses que se seguiram ao acidente. E foram detectados aproximadamente 5 mil casos de câncer da tiróide, atribuídos ao iodo radioativo absorvido através do consumo de leite nas semanas imediatamente posteriores ao acidente, entre aqueles que eram crianças à época.

Houve sofrimento real, particularmente entre as 330 mil pessoas que foram realocadas após o acidente. A esse respeito não resta qualquer dúvida. Porém, para as 5 milhões de pessoas que vivem em regiões atingidas e que são caracterizadas como vítimas, a radiação não teve nenhum impacto perceptível sobre a saúde física.

Isso porque essas pessoas ficaram expostas a baixas doses de radiação, que na maioria das vezes eram comparáveis aos níveis de ambientes naturais. Duas décadas de decomposição natural e de medidas paliativas significam que a maioria dos territórios originalmente considerados "contaminados" já não merece esse rótulo. À parte o câncer da tiróide, que tem sido tratado com sucesso em 98,5% dos casos, os cientistas não conseguiram documentar qualquer conexão entre radiação e condição física.

O caso em que foi encontrado um impacto claro é o da saúde mental. O medo da radiação, ao que parece, representa uma ameaça potencial à saúde muito maior do que a própria radiação. Os sintomas de estresse são sobejos e muitos moradores das áreas afetadas acreditam piamente que eles mesmos estariam condenados à saúde precária e à morte prematura pela radiação.

Isso se deve, em parte, à reservada postura soviética inicial: Mikhail Gorbatchov, o líder soviético à época, enfrentou o tema na televisão apenas semanas depois, em 14 de maio de 1986. Mitos e equívocos fincaram raízes que resistiram a esforços subseqüentes para fornecer informação confiável. Esses mitos, combinados com políticas de benefícios governamentais de grande alcance que classificam milhões de pessoas que vivem nas regiões afetadas de Chernobyl como inválidas, estimularam comportamentos fatalistas e passivos e geraram uma "cultura de dependência" nas comunidades atingidas.

-------------------------------------------------------------------------------- Mais do que equipamentos de diagnóstico sofisticado, é preciso ter informação confiável para fazer frente ao legado de medo de Chernobyl --------------------------------------------------------------------------------

O Fórum Chernobyl das Nações Unidas, um grupo de oito agências da ONU e representantes de Belarus, Rússia e Ucrânia, reforçou essas conclusões. O Fórum Chernobyl foi criado para abordar a confusão reinante quanto ao impacto do acidente, tanto entre o público como entre os funcionários do governo, quando declarou um veredicto claro nos temas em que um consenso científico podia ser alcançado. O Fórum teve êxito nessa iniciativa, e uma nova e reconfortante mensagem sobre o impacto da radiação foi divulgada ao público em setembro (um resumo facilmente digerível está disponível em http://iaea.org/Publications/Booklets/ Chernobyl/chernobyl.pdf ).

As conclusões do Fórum Chernobyl deveriam ter causado alívio, pois elas mostram que o espectro que assombra a região não é a radiação invencível, e sim, a pobreza conquistável. A região precisa de políticas voltadas para a geração de novos meios de subsistência em vez do reforço da dependência; programas de saúde pública que enfrentem as questões de estilo de vida (fumo e bebida) que minam as condições sanitárias em toda a antiga URSS; e iniciativas de desenvolvimento comunitário que promovam a autoconfiança e um retorno à normalidade.

A recepção dispensada à mensagem do Fórum Chernobyl, porém, foi surpreendentemente confusa. Algumas autoridades reverteram à linguagem alarmista sobre o número de fatalidades atribuídas a Chernobyl. Algumas ONGs e instituições de caridade reagiram incredulamente, mencionando como evidência a reconhecida saúde precária da população geral. Opositores da energia nuclear sugeriram que o interesse pessoal comprometeu a integridade do Fórum Chernobyl.

Comparadas à impressionante comunidade científica que dá sustentação ao Fórum Chernobyl, essas reações refletem a tenacidade não só dos mitos e dos erros de interpretação, mas também dos interesses adquiridos. O novo conceito sobre Chernobyl ameaça a existência das instituições de caridade - como as que oferecem "folgas" de saúde no exterior para crianças - cujas campanhas de arrecadação dependem das imagens gráficas de bebês deformados.

O novo entendimento também priva as autoridades locais de uma forma rotineira de conquistar simpatia internacional, ainda que a repetição desse tipo de apelos após duas décadas renda pouca ajuda financeira. Ao desvirtuar os problemas, essas abordagens ameaçam desviar os parcos recursos para as soluções incorretas.

O 20º aniversário do acidente de Chernobyl representa uma ocasião ideal para todos os participantes praticarem um pouco de introspecção honesta. Os governos estão certos por se preocuparem sobre a sorte dos territórios atingidos por Chernobyl, porém, o caminho adiante exigirá novas formas de pensar e decisões corajosas, especialmente uma mudança nas prioridades, passando dos benefícios insignificantes a milhões e passando a gastos dirigidos que ajudem a promover crescimento econômico e de oferta de postos de trabalho. Igualmente, as instituições de caridade estão certas em se preocuparem a respeito da saúde da população, porém, elas devem concentrar-se em promover estilos de vida salutares em comunidades afetadas, em vez de despachar crianças ao exterior como se as suas casas estivessem contaminadas.

Todos os lados estão certos em se preocuparem com as populações afetadas, no entanto, mais do que qualquer equipamento de diagnóstico sofisticado, é necessário ter informação confiável, apresentada em um formato digerível, para fazer frente ao destrutivo legado de medo de Chernobyl. As crianças de Chernobyl já estão crescidas; seus interesses, e os dos seus próprios filhos, são melhor atendidos não por despertarem constantemente o pesadelo da radiação, mas por lhes oferecer as ferramentas e a autoridade de que necessitam para reconstruir as suas próprias comunidades.

Kalman Mizsei é administrador-adjunto e diretor regional da UNDP para a Europa e a Comunidade de Estados Independentes (CEI).

Louisa Vinton é gerente do Programa Sênior da UNDP responsável pela CEI Ocidental e os países do Cáucaso, bem como de Chernobyl.