Título: Em silêncio, bens de consumo importados invadem o mercado
Autor: Raquel Landim
Fonte: Valor Econômico, 17/04/2006, Brasil, p. A3

Quinta-feira de sol, véspera de feriado, 11h30 da manhã, 31 graus. O Largo da Batata, na zona oeste da cidade de São Paulo, ferve com o trânsito e o vai-e-vem de gente pelas ruas. A região é conhecida pela profusão de camelôs e pelas lojas de móveis, roupas e eletrodomésticos. Quase na mesma esquina, lado a lado, estão lojas do Extra Eletro, Ponto Frio e Casas Bahia. Nas prateleiras do Extra, é possível encontrar seis marcas de ferro elétrico: Mallory, Britânia, Black & Decker, Arno, Walita e Toast Master. Ricardo Benichio/Valor José Fuentes , da Philips: "Se não fosse pelos tributos seríamos invadidos pelos asiáticos nos produtos portáteis"

A reportagem do Valor procurou a origem dos produtos. Tarefa complicada. É preciso virar o ferro elétrico de um lado para o outro. A procedência está em letras miúdas, às vezes na caixa. Um deles é brasileiro. Em outros, há uma estranha inscrição: "Made in PRC". A expressão aparece em outros produtos. Da marca Britânia, há sanduicheira, aparelho de som portátil, e até um home theatre. Entre os aparelhos de som portáteis - todos importados - o da Gradiente foi "made in PRC". A sigla significa "Popular Republic of China". O gigante asiático é o produtor de uma série de bens de consumo de marcas brasileiras.

As importações de bens de consumo do Brasil cresceram 34% no primeiro trimestre do ano, atingindo US$ 2,4 bilhões, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), do Ministério do Desenvolvimento. O percentual é superior à alta de 24% das compras externas totais do país de janeiro a março. A participação dos bens de consumo na pauta de importação subiu de 11,3% no primeiro trimestre de 2005 para 12,2% no mesmo período deste ano.

Esses produtos são bastante sensíveis à variação do real, que subiu 7,74% em relação ao dólar nos três primeiros meses do ano. O aumento das importações de bens de consumo supera as demais categorias de uso: bens de capital (31%), bens intermediários (17%) e combustíveis (32%).

Favorecidos pelo aumento do crédito, os bens de consumo duráveis se destacam com alta de 42% nas importações no trimestre. Dados de janeiro e fevereiro apontam aumento de 66% nas importações de máquinas e aparelhos de uso doméstico, 36% de utensílios domésticos, 39% de roupas. Já as importações de bens de consumo não-duráveis, mais influenciadas pela renda, cresceram 28% no trimestre. As compras externas de produtos farmacêuticos subiram 50%, as de vestuário, 60%, e as de alimentos, 21%.

A rede varejista Wal-Mart informa que aumentou em 30% suas importações no primeiro trimestre do ano. A empresa aproveitou a queda do dólar para trazer produtos a preços mais competitivos. Segundo a assessoria de imprensa, a variação da moeda foi repassada ao consumidor e os preços dos produtos importados caíram 10,5%.

A participação dos itens importados entre os produtos do Wal-Mart é de apenas 3%. A empresa diz que não houve mudança no mix de produtos, mas apenas um crescimento nas vendas dos produtos já importados, como eletrônicos, utilidades domésticos e vestuário.

No Magazine Luiza, a fatia dos importados subiu de 6% no primeiro trimestre de 2005, para 8% de janeiro a março deste ano, mas ainda está distante dos 15% do auge do Plano Real. "A tendência é aumentar mais se o dólar continuar caindo", diz Boscho Cordeiro, diretor-comercial da empresa. Ele ressalta, porém, que não compra produtos com marca própria no exterior. Os importados são adquiridos diretamente dos fabricantes nacionais. O dólar também barateou itens com componentes importados. A rede está comemorando vendas seis vezes maiores de TVs de plasma por mês, cujos preços caíram de R$ 20 mil para R$ 9 mil.

Diferentemente do que ocorreu no Plano Real, quando a moeda brasileira valia o mesmo que o dólar, a "invasão" de importados no Brasil agora é silenciosa. As marcas expostas nas prateleiras são velhas conhecidas dos consumidores. A inscrição "indústria brasileira" não é mais garantia de que o produto foi feito no país. Em um mixer da Mondial, vendido no Ponto Frio, estava escrito: "indústria brasileira" e, logo abaixo, "made in China".

Esse detalhe passa despercebido pelo consumidor. A marca reconhecida é a garantia que ele precisa de que terá assistência técnica qualificada. Os traumas do Plano Real, quando a enxurrada de importados trouxe itens de má qualidade, estão vivos na memória. Um vendedor do Extra comenta, apontando para um microondas importado de uma marca desconhecida: "Esse aí é importado, não vendi nenhum, apesar da promoção." O produto custa cerca de R$ 200 a menos que os concorrentes.

Apesar do guarda-chuva das marcas nacionais, os importados estão ganhando espaço dos produtos realmente fabricados no país. Um cruzamento entre os dados do IBGE e da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex) demonstra que a quantidade importada de bens de consumo cresceu mais rapidamente que a produção nacional. Nos últimos 12 meses até fevereiro, o volume importado de bens de consumo duráveis aumentou 41%, enquanto a produção nacional subiu 12%. A quantidade importada de bens não-duráveis cresceu 7,1% e a produção, 4%.

A concorrência com os importados e o efeito da queda do dólar no custo dos insumos começa a causar impacto nos preços ao consumidor, avalia o coordenador de análise econômica da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Salomão Quadros. Os preços dos equipamentos eletrônicos caíram 4% no varejo no primeiro trimestre deste ano, segundo o Índice de Preços ao Consumidor do Índice Geral de Preços (IGP), da FGV. De janeiro a março de 2005, os preços dos equipamentos eletrônicos caíram apenas 0,2%. Nos eletrodomésticos, que sofrem pressão da alta dos custos do aço e do cobre, houve um aumento de 0,5% nos preços no varejo no primeiro trimestre deste ano. No mesmo período em 2005, esses produtos subiram 3%.

Uma fonte do mercado de eletrodomésticos explica que se o produto chinês chegar ao país com um preço 20% a 30% inferior é melhor importar do que fabricar no Brasil. "A empresa é quase obrigada pela concorrência", diz. Com o atual nível do dólar, está complicado produzir cafeteiras e ferros elétricos. Em produtos térmicos, o Brasil é pouco competitivo e estima-se que 90% seja importado. Já em liquidificadores ou ventiladores, o país conta com vantagens como alto consumo e produção de motores.

Nas geladeiras, fogões e lava-roupas, a gaivota, ícone da Zona Franca de Manaus, ainda resiste. O símbolo também aparece nos televisores expostos nas lojas do Largo da Batata, indicando a origem do produto. José Fuentes, vice-presidente da divisão de consumo eletrônico da Philips, explica que o frete e a carga tributária tornam inviável a importação de TVs. "O dólar ainda não conseguiu vencer as vantagens tributária de Manaus", diz. Um televisor importado paga 25 % de imposto de importação e 20% de IPI.

Ele explica que em itens menores, como DVD ou aparelhos de som, o impacto do frete é muito menor. "Se não fosse pelos tributos seríamos invadidos pelos asiáticos nos produtos portáteis", diz Fuentes. O percentual de itens importados pela Philips cresceu entre 20% e 30% no último ano, mas ainda não representa mais de 15% do total. A empresa foca as importações de aparelhos de áudio portáteis.

Ao lançar um produto no mercado, as empresas também adotam a estratégia de importar antes de decidir pela fabricação local, explica Luciano Sá, gerente de produtos áudio e vídeo da LG. Apesar do frete, a LG está importando geladeiras, um mercado em que acabou de entrar. Só é viável porque se trata de um produto "top" de linha. Da linha de 12 DVDs da empresa, oito são nacionais e quatro importados.

Em uma loja de artigos esportivos, bastante movimentada dada a proximidade da Copa do Mundo, a reportagem encontrou um produto ainda autenticamente brasileiro. A camisa oficial da seleção, fabricada pela multinacional Nike, exibia na etiqueta: "Feito no Brasil".