Título: EUA querem 'limpar' energia já existente
Autor: Tatiana Bautzer
Fonte: Valor Econômico, 17/04/2006, Internacional, p. A11

Os EUA estão optando por tecnologia para "limpar" fontes de energia tradicionais altamente poluentes, em vez de estimular a pesquisa em fontes renováveis. O maior orçamento de pesquisa dos laboratórios de energia do governo americano está voltado para "carvão limpo", que permite reduzir drasticamente as emissões de gás carbônico e metano na geração de eletricidade a carvão. A disparada nos preços do gás natural nos últimos dois anos aumentou o interesse dos geradores de eletricidade pelo centenário e poluidor carvão como principal fonte de energia elétrica nos EUA. Hoje, 51,3% da capacidade instalada nos EUA são de termoelétricas movidas a carvão; outros 17% são de termoelétricas que utilizam gás natural. A geração de eletricidade e os veículos movidos a derivados de petróleo representam juntos 75% do total de emissões nos EUA. Numa visita de três dias organizada pelo Departamento de Estado aos laboratórios de pesquisa financiados pelo Departamento de Energia e por universidades na Pensilvânia e na Virgínia Ocidental, da qual o Valor participou, ficou claro que a tecnologia está pronta para ser usada comercialmente, mas não há o estímulo para que as empresas americanas invistam os bilhões de dólares para reduzir as emissões atuais se não forem obrigadas por lei federal. O governo Bush é totalmente contrário à obrigatoriedade de redução de emissões, e em seu primeiro mandato o país recusou-se a ratificar o Protocolo de Kyoto. Ecoando os lobistas da indústria energética, a posição oficial do governo Bush é de que a melhor maneira de lidar com emissões é voluntária. A política dificulta o desenvolvimento de um mercado de créditos de carbono como o que existe na Europa, que estimula as empresas a investir na redução da poluição para evitar multas e recuperar pelo menos parte do investimento vendendo o crédito de carbono no mercado. Tatiana Bautzer/Valor Cientista do Laboratório Nacional de Tecnologia Energética dos EUA mostra equipamento que "limpa" o carvão por meio de um "banho de amônia"

Mas os sinais explícitos de aquecimento global , como a redução progressiva da calota de gelo do pólo Norte e o aumento da intensidade de furacões no sul dos EUA, estão influenciando a opinião pública. A Califórnia, pioneira em restringir emissões em veículos, pode ser o primeiro Estado a implantar limites para emissões do setor industrial, anunciou na semana passada o governador Arnold Schwarzenegger.

"Já tive várias reuniões com CEOs de companhias energéticas. Às vezes perguntamos a eles quem acredita que o mercado continuará sem legislação sobre o assunto nos próximos anos. Praticamente ninguém se manifesta, todos sabem que a regulamentação é inevitável", afirma Granger Morgan, do Departamento de Energia e Política Pública da Universidade Carnegie Mellon. "Na minha opinião, só será criado um mercado de créditos de carbono eficiente nos EUA se houver a obrigação de redução", afirma. Existe hoje um mercado na Bolsa de Chicago, mas ainda incipiente e com cotação inferior a US$ 1 por tonelada de carbono, enquanto os preços na Europa superam ? 20.

Com a inércia do governo federal, o Congresso começou a discutir neste mês um sistema próprio de restrição de emissões. Nas audiências convocadas pelo Comitê de Energia, pela primeira vez uma empresa americana de geração, a Duke Energy, manifestou-se a favor de regulamentação contra emissões _ em parte porque a empresa tem interesse em ampliar a parcela de geração com energia nuclear nos EUA, hoje em 20% do total. A Duke defendeu posição contrária ao Edison Electric Institute, associação nacional de geradoras. O poderoso senador republicano Allen Specter disse numa audiência pública que espera discutir um sistema de controle de emissões nacional ano que vem.

A opção por investir na "limpeza" de fontes "sujas" como carvão e outros combustíveis fósseis ocorre em parte por pressão da indústria. Além de um parque de geração baseado 50% em carvão, a América do Norte tem gigantescas jazidas do mineral que podem ser obtidas a custo baixo. A construção de hidroelétricas enfrenta grandes resistências por causa do impacto ambiental, assim como energias nucleares por causa da disposição do lixo radioativo. Além disso, estima-se que o uso de carvão dispare nos próximos anos com a demanda de energia da China e da Índia_ o consumo deve aumentar em 40% até 2050 com a expansão de geração energética nesses países.

A resistência à regulamentação é fácil de entender observando os altos custos envolvidos. A Dominion Resources, geradora com 28.100 MW instalados e grandes reservas de petróleo e gás, deve gastar até 2010 pelo menos US$ 1,1 bilhão para adaptar suas fábricas à regulamentação de poluição do ar e água da Agência de Proteção Ambiental (EPA) nos EUA. O gerente sênior da Dominion, Rob Jones, diz que o problema é que "o consumidor não está preparado para pagar o prêmio envolvido na energia com emissões reduzidas". Diz ainda que uma lei mal feita pode distorcer o mercado, prejudicando alguns competidores e beneficiando outros.

Apesar disso, quase todo investimento novo em geração a carvão está sendo feito usando alguma tecnologia de redução de emissões nos geradores, afirma o diretor da Siemens Power Corporation, Steve Potzmann. O executivo da Siemens (que expandiu suas atividades nos EUA com a compra da Westinghouse em 1998) diz que uma regulamentação não deveria "forçar" uma adaptação da atual capacidade instalada, mas permitir uma adaptação gradual que não provoque problemas financeiros às empresas.

Durante um jantar num hotel em Pittsburgh com os jornalistas, que reuniu os representantes da indústria e do governo, um convidado de uma organização não governamental disse que lamentava, mas teria que ser o "penetra que estraga a festa". John Hanger, presidente da ONG ambiental Penn Future e ex-funcionário do órgão regulador de energia do Estado, disse ser indispensável que o governo decrete redução de emissões. Os EUA continuam aumentando o volume de emissões todos os anos e representam 25% do total mundial. "O modelo voluntário não funciona. Será preciso um presidente democrata para pagar o preço político de criar uma legislação que restrinja emissões", diz Hanger. Se o governo federal não fizer nada, os estados vão começar a fazer e haverá múltiplas legislações diferentes a cumprir.

De qualquer maneira, cientistas e companhias estão prontos para colocar a tecnologia em uso comercial assim que houver uma decisão política. O Laboratório Nacional de Tecnologia Energética (Netl, na sigla em inglês), do Departamento de Energia, lidera a pesquisa em "carvão limpo" com dinheiro público _ seu orçamento anual é de US$ 800 milhões _ e já produziu tecnologia que está sendo usada na Europa e EUA.

A pesquisa inclui diversos tipos de tecnologia para redução de emissões, com destaque para reatores de gaseificação de carvão. Depois que o carvão é gaseificado, há várias maneiras diferentes de "capturar" o gás carbônico antes ou depois da combustão para produção de energia. Os processos envolvem materiais sólidos porosos, membranas instaladas dentro dos tubos de gás ou diversos líquidos que captam CO2 em contato com o gás. Há ainda a alternativa de extração de hidrogênio do carvão gaseificado. Todas essas tecnologias estão em fase de estimativa de custos, algumas em testes com o setor privado e outras já sendo usadas comercialmente.

Outra parte importante é definir as melhores maneiras e locais para "estocar" o dióxido de carbono retirado. Entre as alternativas, estão a plantação de florestas, para absorção do gás, e depósitos geológicos. A tecnologia mais usada será a injeção de gás carbônico em reservatórios geológicos naturais, sejam lençóis aqüíferos salinos (cuja água não é usada para consumo) ou reservatórios vazios de petróleo e gás natural. Espera-se que o gás carbônico seja absorvido por formações rochosas subterrâneas depois de algumas centenas de anos. Sean Plazynski, gerente de tecnologia de captura de carbono da Netl, está trabalhando com 40 Estados americanos e mais de 300 companhias nos EUA e no exterior no mapeamento dos reservatórios geológicos. O laboratório também está envolvido em projetos internacionais com Índia, Brasil, México, Canadá, Austrália, China, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul e Reino Unido. A Petrobras estuda tecnologias de captura de carbono com a Universidade de Pittsburgh.

Na primeira fase, de 2003 até o ano passado, os campos foram identificados. A partir deste ano, começaram os testes para injeção subterrânea do gás. Já houve testes no Novo México, Texas e Virgínia Ocidental, em parceria com as empresas Consol, Burlington Resources e American Electric Power. A lista de participantes das diversas parcerias inclui as maiores empresas mundiais do setor de petróleo e gás, como British Petroleum, ConocoPhillips, Shell e Amerada Hess, além de empresas da área de distribuição e geração de energia elétrica, operadores de gasodutos e produtores de carvão (Consol, o maior exportador de carvão dos EUA e um dos maiores produtores do país). Além de estocar o gás carbônico para fins ambientais, as injeções subterrâneas também ajudam na exploração de campos de petróleo e gás que estão na fase final de produção. Cientistas da Netl, das companhias e do centro de supercomputadores em Pittsburgh estão fazendo simulações sobre a segurança dos reservatórios no futuro. E há pesquisas em campos já mapeados para identificar vazamentos por poços de petróleo já fechados usando helicópteros com sensores magnéticos.