Título: Mercado de álcool precisa de regulação mínima
Autor: Anamárcia Vainsencher
Fonte: Valor Econômico, 02/12/2004, Especial, p. F-2

O escancaramento do mercado brasileiro pelo então presidente Fernando Collor de Melo, que Luiz Carlos Correa Carvalho, presidente da Câmara Setorial Produtiva do Açúcar e Álcool classifica de verdadeiro "estupro", afetou muito a cadeia sucroalcooleira, mesmo considerando que o antigo órgão regulador setorial, o Instituto do Açúcar e Álcool (IAA), não atendesse mais às necessidades do setor produtivo. "Fernando Henrique Cardoso também acelerou a abertura não planejada, o que foi especialmente pior para o álcool, segmento que ficou órfão e cheio de problemas", diz Carvalho. Para ele, hoje, a situação está visivelmente mais acomodada, porém o mercado do álcool precisa de uma regulação mínima, visto que está sujeito a fatores que envolvem desde a confiança do consumidor até a atuação dos produtores de cana e de álcool, dos distribuidores, dos fabricantes de bens de capital, da indústria automotiva e do governo. "A câmara setorial precisa trazer novamente todos os atores para discutir o que acontece na área do álcool", preconiza Carvalho. O presidente da Câmara Setorial diz que a Petrobras será convidada para integrar o fórum, do qual, até agora, participavam somente o Ministério das Minas e Energia (MME) e a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Carvalho diz que a decisão de chamar a Petrobras foi tomada porque, de olho no mercado internacional de álcool, não há como ignorar que a empresa tem o maior know how do mundo, é especialista em logística e na mistura do álcool à gasolina. Na exportação, a Petrobras poderia contribuir tanto na logística, fazendo o álcool chegar até os portos, como, pela sua experiência internacional, na avaliação das negociações, acrescenta a engenheira mecânica Márcia Azanha Dias de Moraes, professora do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), cuja tese de doutorado versou sobre a desregulamentação do setor sucroalcooleiro brasileiro. Nesse trabalho, Márcia destaca que o mercado de álcool combustível, dado o seu caráter estratégico, é o que mais requer a intervenção estatal. Primeiro porque, a preços de mercado, o álcool não compete com a gasolina, visto que seus custos de produção são maiores. Além disso, a viabilidade do álcool combustível é dependente de fatores conjunturais, entre os quais o nível de preços do petróleo no mercado internacional, a taxa de câmbio do real em relação ao dólar, os acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no que se refere à política interna de preços dos derivados de petróleo. Para ela, do mesmo modo que a relação de preços pode tornar o álcool combustível atraente para o consumidor, na situação inversa pode inviabilizar sua produção e comprometer o abastecimento. O Estado, segundo Márcia, necessita de instrumentos, como mecanismos tributários, que possibilitem o direcionamento da demanda entre os combustíveis alternativos. Tanto o governo federal como o estadual, a seu ver, podem adotar sistemas de tributação que incidam de forma diferenciada sobre os combustíveis, de forma a direcionar sua utilização. Assinalando que a Constituição de 1988 redefiniu o papel do Estado na economia, a especialista aponta as intervenções que considera necessárias: definição da matriz energética; divulgação da demanda estimada e monitoramento dos níveis adequados de produção de álcool; direcionamento da produção entre álcool e açúcar de forma a atender as demandas dos produtos; definição de um mecanismo tributário que permita a convivência do álcool combustível e da gasolina em níveis prefixados pela política energética; utilização de mecanismos tributários (por exemplo, IPI) para adequar o uso do combustível alternativo; apoio à formação dos estoques; promoção da abertura do mercado externo para os produtos da cadeia sucroalcooleira. Na esfera estadual, diz, os governos também devem recorrer a mecanismos tributários (ICMS) sobre os combustíveis e os automóveis, de forma a atender às demandas esperadas pelos combustíveis; coordenar as câmaras setoriais; e, da mesma forma que o governo federal, monitorar a auto-gestão da cadeia sucroalcooleira e dos agentes envolvidos no mercado de combustíveis (cadeia automobilística e de combustíveis), considerando as questões de emprego e renda envolvidas. Em resumo, conclui na sua tese, o afastamento do Estado deve ser substituído por novos mecanismos, cabendo aos governos o papel de coordenadores setoriais. Personagem dos acontecimentos, Luiz Carlos Correa Carvalho, presidente da Câmara Setorial Produtiva do Açúcar e Álcool, conta que o setor tem uma longa história de percalços de superprodução e escassez e experimentou uma grande ruptura em 1930, quando o mundo se debatia com o crash da bolsa de Nova York. "Não havia Estado, vivíamos uma crise medonha e a criação do Instituto do Açúcar e do Álcool - IAA - aconteceu num ambiente de intervencionismo estatal em todo o mundo", relembra. "Vivíamos flutuações terríveis de preços", reforça Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica). O IAA foi uma reivindicação do setor, acrescenta Márcia de Moraes, da Esalq. Carvalho concorda. "Passamos do mais completo laissez-faire à regulamentação praticamente total, a pedido dos produtores", conta.

" Enquanto o mundo respirava a queda do muro de Berlim, aqui o IAA acabou se tornando a Geni da história"

Segundo Márcia de Moraes, a cadeia produtiva da cana-de-açúcar certamente foi uma das mais controladas pelo Estado brasileiro. Desde a década de 30, o governo intervinha intensamente nas suas atividades: estabelecia cotas de produção de açúcar e de álcool para cada unidade industrial; interferia na comercialização dos produtos, ditando os preços da tonelada de cana-de-açúcar, do açúcar e do álcool; era responsável, via IAA, por toda a exportação açucareira. Assim, completa, restava aos produtores produzir, enquanto o planejamento e a comercialização ficavam a cargo do Estado. No artigo "O Agronegócio da Cana-de-Açúcar", a especialista assinala que uma característica específica do agronegócio açucareiro do país é o fato de produzir em escala industrial tanto açúcar quanto álcool. "Esse aproveitamento múltiplo da cana-de-açúcar torna bastante complexo o planejamento e funcionamento desta cadeia produtiva em ambiente de livre mercado (sem a interferência do governo), exigindo ampla organização e coordenação de todos os elos que a compõe", escreve. É preciso lembrar, diz, que a existência de falhas de mercado nos elos da cadeia produtiva, que podem acarretar problemas distributivos ao longo dela, justificam a intervenção estatal, cuja extensão vai depender dos tipos de imperfeições observadas. A desregulamentação setorial teve idas e vindas mesmo antes da Constituição de 1988. "Vivi essa história. Nos anos 70 a 80, enquanto o mundo respirava a queda do muro de Berlim, aqui o IAA já era questionado e acabou se tornando a Geni da história. O fato é que a estrutura do Estado estava capengando e, fechando o Instituto, Collor só dava a paulada final", rememora Carvalho. Ele, porém, faz justiça ao papel do IAA, inclusive no financiamento do parque sucro-alcooleiro, com recursos do fundo especial de exportações. Na década de 70, os sucessivos choques do petróleo pegaram o país de calças curtas, nas palavras do presidente da Câmara Setorial. Nessas circunstâncias, o governo Geisel, entre outras medidas "drásticas", anunciou a criação do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, em 1975. O Proálcool, analisa Márcia Moraes, alterou o perfil da produção de açúcar e álcool, além de estimular extraordinário aumento da área plantada de cana-de-açúcar. De acordo com dados da Unica, entre a safra 75-76 e a 98-99 experimentou aumento de mais de 2.400%. Os estímulos iniciais ao álcool combustível foram dados pelo governo federal, de forma centralizada. Primeiro, foi incentivada a produção de álcool anidro, com regras de comercialização e produção bem definidas, preservando os produtores dos riscos do mercado. No início dos anos 90, na segunda fase do Proálcool, a de carros movidos a álcool hidratado, a demanda ficou superaquecida devido à sua intensa utilização, gerando uma crise de desabastecimento, o que, analisa Márcia, comprometeu o futuro do programa. O descompasso entre a oferta e a demanda, o início de problemas entre o setor privado e o governo, e a abertura comercial iniciada pelo governo Collor mudaram a atuação estatal no setor sucroalcooleiro. A última fase da intervenção, no início dos anos 90, caracteriza-se pela redução drástica da ação estatal, já que o ambiente institucional é completamente distinto. A partir daí, nem tudo foram facilidades: a saída do governo (que liberou os preços e a comercialização dos produtos sem um mínimo de regulamentação), foi feita num momento de super oferta, quando o setor estava mergulhado numa crise sem precedentes. Produto de demanda inelástica que tem um crescimento vegetativo da ordem de 2% ao ano, apesar de oscilações de preços, hoje, o mercado interno de açúcar é estável. "Sua volatilidade é menor do que a do álcool", diz Antonio Padua Rodrigues, diretor técnico da Unica. A expansão do consumo é função do aumento da população e da evolução do Produto Interno Bruto (PIB): com desenvolvimento, come-se mais e há expansão na procura da indústria alimentícia. O consumo interno do produto, informa, é da ordem de 9,5 milhões de toneladas, pouco menos de 36% da safra atual, de cerca de 26,5 milhões de toneladas. Embora o mercado de açúcar seja menos volátil do que o do álcool, a dança dos preços da commodity não tem nada a ver com o custo de produção, segundo Rodrigues. Para ter margem de lucro, o produtor necessita obter um preço bruto de R$ 55,00 por tonelada de cana processada, o equivalente a R$ 27,00 por saca de 60 quilos.