Título: Os donos da bola e seus signos inesquecíveis
Autor: Couto, José Geraldo
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2006, Eu & Fim de Semana, p. 4

No longínquo 1973, um samba de muito sucesso de Luiz Américo dizia em seu refrão: "É a camisa dez da seleção/ Dez é a camisa dele/ Quem é que vai no lugar dele?". Ele, no caso, era Pelé, que se despedira em 1972 da camisa canarinho, deixando um vácuo difícil de ser preenchido. Hoje a situação é outra. Nesta Copa do Mundo, na Alemanha, veremos astros em campo com os mais diversos números: o francês Henry com a 12, o português Deco com a 20, o ucraniano Schevchenko com a 7, o alemão Ballack com a 13, o brasileiro Ronaldo com a 9 e por aí vai. Mas trinta ou quarenta anos atrás, com qualquer cor ou distintivo, a camisa 10 era o símbolo máximo da excelência.

Depois de Pelé, o número passou a distinguir o maior craque do pedaço, o dono do time. Do português Eusébio ao argentino Maradona, do inglês Bob Charlton ao francês Zidane, do dinamarquês Michael Laudrup ao alemão Lothar Matthäus, todos brilharam em Mundiais levando às costas o número mágico, conforme observa o livro "A Magia da Camisa 10", de Vladir Lemos e André Ribeiro, publicado recentemente pela editora Versus. No Brasil, a distinção do número 10 era tão generalizada, na era Pelé, que o ataque da seleção brasileira campeã do mundo em 1970 era composto exclusivamente por jogadores que atuavam com esse número em seus clubes: Jairzinho no Botafogo, Tostão no Cruzeiro, Rivellino no Corinthians e, claro, Pelé no Santos.

Tudo diferente, hoje. Embora a performance excepcional de Ronaldinho Gaúcho, eleito duas vezes seguidas o melhor do mundo, tenha ressuscitado boa parte do prestígio do número 10, há quem prefira o 11 de Romário, o 9 de Ronaldo ou o 22 de Kaká no Milan. Houve nas últimas duas décadas - talvez desde a conturbada aposentadoria de Maradona - uma nítida dessacralização da camisa 10.

Mas como começou, e como evoluiu, essa história de atribuir um valor simbólico especial aos números das camisas dos futebolistas? Um rápido passeio pelo assunto permite iluminar um pouco da própria história do futebol e da sua relação com a cultura e a sociedade.

No começo do século XX, quando o futebol se espalhou pelo mundo, as camisas dos jogadores não tinham numeração. Pior que isso: a camisa do goleiro era igual à dos outros jogadores de seu time. Dá para imaginar a confusão. E isso ocorria não apenas nas partidas entre clubes, mas também entre seleções.

Foi só a partir da fatídica Copa de 1950, cuja final foi perdida pelo Brasil para o Uruguai no Maracanã, que os escretes passaram a usar números nas camisas. (A diferença entre o uniforme do goleiro e o dos jogadores "de linha" tornara-se obrigatória já em 1921, de acordo com o livro "Goleiros, Heróis e Anti-Heróis da Camisa 1", de Paulo Guilherme, recém-lançado pela editora Alameda.)

A ausência de numeração nas primeiras décadas do futebol refletia um estágio em que o esporte ainda era semi-amador e a identificação dos jogadores se dava pelo estilo de penteado, por toucas e adereços diversos. Os campeonatos eram precários, a cobertura jornalística, impressionista - quase se confundindo com a crônica social - e a dimensão comercial do futebol apenas engatinhava.

Com o crescimento do público nos estádios, a atuação crescente da mídia e a profissionalização do esporte, os números se tornaram imprescindíveis. Mas, numa primeira e longa fase, apenas para a identificação dos jogadores, tendo em vista a organização dos times e a comodidade da imprensa e do público. Não existia hierarquia entre os números quanto à importância de um determinado jogador ou função dentro da equipe. Superstições com certeza havia - alguns jogadores se apegavam a determinados números de sorte - mas essa dimensão raramente ganhava o imaginário do público.

Um novo paradigma surgiria a partir de Pelé e da mística criada em torno de sua camisa. O curioso é que, pelo menos na seleção brasileira, a atribuição do número 10 àquele que seria o Rei do futebol deu-se por caminhos fortuitos.

Nas vésperas da Copa de 1958, na Suécia, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antecessora da atual CBF, esqueceu de mandar à Fifa, junto à relação de jogadores inscritos para o torneio, o número de cada um. Descoberto o equívoco, os delegados brasileiros ao congresso da Fifa distribuíram números aos jogadores mais ou menos ao acaso: o goleiro Gilmar ficou com a camisa 3, o craque Didi com a 16, Garrincha com a 11 e Pelé, claro, com a 10. O episódio é narrado no livro "Deuses da Bola - Histórias da Seleção Brasileira de Futebol", de Eugênio Goussinsky e João Carlos Assumpção (editora DBA).

Casual ou não, o fato é que a identificação de Pelé com a camisa 10 passou a ser tão profunda que, num jogo em que o técnico Zagallo deixou o Rei na reserva - um amistoso contra a Bulgária, no Morumbi, em 26 de abril de 1970 - os torcedores ficaram chocados com uma imagem inusitada: Pelé caminhando para o banco com o número 13 às costas. Com a camisa 10 estava o titular Tostão, que até hoje confessa ter-se sentido "um usurpador". Para os que presenciaram a cena, parecia que a ordem natural do universo tinha sido subvertida.

Claro que não eram todos os craques e "donos do time" que usavam a 10. Um contra-exemplo notável é o do meio-campista Beckenbauer, o maior jogador da história do futebol alemão, que costumava atuar com a camisa 6. Aliás, os racionais alemães, ao contrário dos passionais latinos e dos festivos africanos - com perdão dos estereótipos - nunca se renderam totalmente à mística da camisa 10 (a exceção, entre seus maiores atletas, foi Lotthar Matthäus).

A escolha do número da camisa, entretanto, pode obedecer a lógicas muito pessoais, quando não idiossincráticas. Manifestações de superstição aparecem às vezes onde menos as esperamos. O supercraque holandês Johann Cruyjff, um dos jogadores mais inteligentes e articulados da história do esporte, escolheu para si a camisa 14 (normalmente, um número de reserva) porque em determinada partida, no início da carreira, marcou dois gols com esse número às costas.

O componente irracional chega a contagiar, em alguns casos, os próprios clubes. Numa das muitas vezes que Romário deixou o Vasco da Gama, o presidente do clube, Eurico Miranda, anunciou que aposentaria a camisa 11 do time, em homenagem ao artilheiro. Depois voltou atrás, por imposição da CBF. Mais recentemente, o Cruzeiro, ao estabelecer a numeração fixa a ser seguida por seus atletas no atual campeonato brasileiro, excluiu o 24, para evitar zombaria ou hostilidade ao seu portador, dada a associação do número com o veado, no jogo do bicho.

Há até casos em que a superstição de um único jogador acaba influindo sobre a atitude de um clube. Um exemplo é o do lateral-esquerdo Nelsinho, que, ao chegar ao Corinthians, nos anos 1980, recusou-se a usar a camisa 4, com a qual tivera uma contusão séria como jogador do Flamengo. Trocou-a pela 6, e levou o alvinegro paulista a adotar esse número para os laterais-esquerdos, passando o 4 a ser usado pelos quartos-zagueiros.

Uma escolha insólita foi a do jogador Ardiles, extraordinário meio-campista argentino, que na Copa de 1982, na Espanha, atuou com a camisa número 1, tradicionalmente reservada aos goleiros. Outro jogador "de linha" que vestiu a camisa 1, numa situação ainda mais curiosa, foi o meia francês Giresse. Na última rodada do campeonato francês de 1982, o goleiro de seu time, o Bordeaux, estava suspenso por ter agredido um bandeirinha. Em protesto, o Bordeaux resolveu entrar em campo sem goleiro. O baixinho Giresse entrou com a camisa 1, mas sem a obrigação de defender o gol. O resultado da brincadeira foi 6 a 0 para o adversário, o Nantes.

A disputa pela camisa 1 causou certa tensão nos bastidores da seleção alemã, a poucos meses da Copa. Depois de conquistar a condição de goleiro titular, Jens Lehmann julgava ter direito ao número, que na última década foi propriedade exclusiva do gigante Oliver Kahn, eleito o melhor jogador da Copa de 2002. Quando ainda era reserva, Lehmann se conformara com o número 9, depois que todos os outros tinham sido distribuídos entre os atletas "de linha" da equipe. Saiu a convocação do time e Lehmann ganhou o número 1. Kahn ficou com a camisa 12.

Um caso ao mesmo tempo cômico e comovente de apego de um atleta a determinado número foi o do atacante chileno Iván Zamorano. Contratado da Internazionale de Milão em 1997, Zamorano bateu de frente com outro astro da companhia, o então maior jogador do mundo, Ronaldo. Cada um deles fora, até então, o número 9 em seus clubes.

Na queda de braço, o Fenômeno venceu e o artilheiro chileno teve que se conformar com a camisa 18. Mas quem falou em se conformar? Para não abrir mão de seu número favorito, Zamorano concebeu um artifício tão engenhoso quanto pueril: mandou bordar um pequeno sinal de adição (+) entre o 1 e o 8 de sua camisa. Resultado: 1 + 8 = 9. A criatividade latino-americana não tem limites.

Nos tempos atuais, entretanto, as superstições e escolhas pessoais cederam terreno aos interesses comerciais e de marketing. A numeração fixa dos jogadores de um time para toda uma temporada - prática corriqueira na Europa e que só agora começa a ser adotada no Brasil - obedece à lógica das vendas de camisas oficiais do clube, em que o logotipo do patrocinador, o nome e o número do atleta formam um todo indivisível. É também essa numeração fixa que ocasiona o surgimento de números esdrúxulos em campo, como 33, 49 etc. - o que faz lembrar o basquete.

A interferência do marketing na escolha dos números dos atletas teve alguns momentos de pico. O atacante Túlio Maravilha, embora fosse um centro-avante de ofício (posição que classicamente pede o número 9, como Coutinho, Careca, Ronaldo, Eto'o), passou a usar a camisa número 7 no Botafogo, nos anos 1990, por imposição do patrocinador, que estampava no uniforme do clube o logotipo do refrigerante 7-Up. Ao se transferir em seguida para o Corinthians, então patrocinado pelo Banco Excel Econômico, o artilheiro adotou a camisa 12, para divulgar o número de dias que o banco dava no cheque especial sem cobrar juros.

Casos extremos como o de Túlio, porém, são relativamente raros, talvez porque patrocinadores, marqueteiros e publicitários tenham percebido que uma intervenção tão invasiva num terreno marcado pelo afeto e pela paixão do torcedor pode ter resultados adversos. Pode ser revelador, nesse contexto, o fato de que a Nike, desde o ano passado, venha tentando resgatar a mística da camisa 10, usando como carro-chefe seu astro contratado mais reluzente, Ronaldinho Gaúcho. É uma tentativa - bem-sucedida, ao que parece - de conciliar o interesse propriamente econômico com a paixão envolvida no esporte. O número 10 nas costas de Ronaldinho atende a essas duas demandas: ajuda a divulgar no mundo todo a marca da gigante norte-americana de artigos esportivos e supre nossa carência de um ídolo em quem caia perfeitamente (como o sapatinho de Cinderela) o manto sagrado que já foi de Pelé.