Título: Crise regional redimensiona o projeto brasileiro de liderança
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2006, Especial, p. A8

Há muito tempo que o sonho dos políticos e diplomatas do Brasil tem sido ampliar a estatura do seu país no mundo, apresentando-o como o líder inconteste de uma América do Sul unida. Mas no momento em que os líderes latino-americanos se reunirem nesse fim-de-semana em Viena para um encontro com seus pares europeus, a região raramente pareceu tão dividida. Além disso, muitos brasileiros reclamam que seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, está sendo transformado em espectador irrelevante em seu próprio quintal por Hugo Chávez, o líder populista da Venezuela rica em petróleo.

A comoção recente foi provocada em 1º de maio pela decisão de Evo Morales, o presidente socialista da Bolívia, de determinar a nacionalização do setor de gás e petróleo do seu país. Ele estava cumprindo uma promessa de campanha. Mas ele foi aconselhado, e aparentemente inspirado, por Chávez. A vítima principal da sua decisão foi o Brasil. O país é o maior consumidor do gás boliviano. A Petrobras, a companhia de petróleo nacional do Brasil, era a sua maior investidora. O Brasil agora poderá ter de pagar até 60% a mais pelo gás.

A reação de Lula pareceu branda. Em vez de afirmar os direitos contratuais do Brasil, ele manteve um encontro não só com o líder boliviano e o presidente argentino Néstor Kirchner, como também com Chávez. Lula declarou que a Bolívia estava agindo no âmbito dos seus direitos. Em troca, Morales ofereceu abster-se de suspender o fornecimento de gás e a negociar o seu preço.

Para críticos do governo Lula, a afabilidade do Brasil revelou a confusão reinante no núcleo da sua política externa. Ao fazer alianças, dizem, o país colocou a pretensa afinidade ideológica acima do interesse nacional e da abordagem baseada em regras para a integração regional. "Toda a investida da diplomacia brasileira nos últimos 20 anos foi abalada", escreveu Rubens Barbosa, um ex-embaixador em Washington, num artigo em jornal.

Considerando-se que é provável que Lula busque um segundo mandato nas eleições de outubro, há alguma postura partidária nessas críticas. Autoridades dizem que o Brasil jamais usará um porrete contra os seus vizinhos. Mas também existe algum fundamento. Tomemos o exemplo dos EUA, maior parceiro comercial isolado do Brasil. Celso Amorim, o ministro das Relações Exteriores, insiste em afirmar que as boas relações são "essenciais" para o Brasil. De acordo com o seu vice, Samuel Pinheiro Guimarães, que é o principal ideólogo do Ministério das Relações Exteriores, no entanto, o Brasil "precisa reagir às iniciativas políticas... da hiperpotência, promovendo alianças políticas com os países da periferia".

Isso levou o Brasil a enfatizar relações com países na África, Oriente Médio e Ásia, com resultados pífios. Por bons motivos, o Brasil deu preferência à Rodada Doha de negociações de comércio mundial à revelia da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) de 34 países, patrocinada pelos EUA. Diante dos tropeços da Rodada Doha, porém, restam ao Brasil poucas alternativas.

Ao assumir o cargo em janeiro de 2003, Lula proclamou a integração regional como sua prioridade na política exterior. O Mercosul, suposta união aduaneira criada entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, em 1994, no entanto, nunca esteve em tamanha desordem. "O Brasil buscou um sonho de unidade na América do Sul, antes de fortalecer e aprofundar o Mercosul", disse Alfredo Valladão, professor na faculdade francesa Sciences-Po.

A Comunidade Sul-Americana de Nações, de 12 países, criada em 2004, está fadada à irrelevância, em função das divisões internas. Colômbia e Peru juntaram-se ao Chile, México e América Central e assinaram acordos comerciais bilaterais com os EUA. Agora, o Uruguai ameaça fazer o mesmo. "O Mercosul é mais um problema do que uma solução para o Uruguai", afirmou recentemente o presidente Tabaré Vázquez. O Brasil nada fez para impedir que Kirchner, da Argentina, tentasse intimidar o Uruguai para não instalar duas grandes empresas de celulose que, segundo ele, irão poluir um rio compartido pelos dois países.

"Não fizemos nada do que deveríamos ter feito pelas economias menores do Mercosul", admitiu Amorim. O grupo precisa de uma "política industrial integrada" e de uma política comum de mediação governamental, algo que requer "uma mudança de cultura, especialmente nos países maiores", afirmou.

O projeto de Chávez é bem diferente do brasileiro. Ele arregimentou Morales para sua "alternativa bolivariana", uma aliança política com a Cuba comunista. Ele não quer ter nada a ver com países que assinaram acordos comerciais com Washington. Onde o Brasil quer integrar, a Venezuela quer dividir. Sob o comando de Chávez, um autocrata eleito, a Venezuela não respeitou contratos nem normas democráticas. No entanto, o Brasil não apenas silenciou sobre sua conduta, como encorajou a Venezuela a unir-se ao Mercosul. Tal reticência em repreender o vizinho se deve, em parte, ao fato de que construtoras brasileiras mantêm grandes projetos na Venezuela, diz o venezuelano Rafael Villa, da Universidade de São Paulo.

A adoção de uma linha dura contra a Venezuela sairia pela culatra, responde Amorim. O ministro diz que, dentro dos limites, sem intervenções, o Brasil usa a influência que tem para reforçar a democracia na Venezuela. Essa influência, argumenta, é limitada pelos EUA, que vetaram a venda de aeronaves brasileiras para a Venezuela. A "guerra fria verbal" entre os governos de Chávez e Bush torna muito mais difícil criar conexões entre a Venezuela e a oposição, afirma.

Talvez. O Brasil, entretanto, não conseguiu articular uma alternativa clara ao chavismo. Não muito tempo atrás, seus líderes tinham uma visão de integração regional baseada na defesa aberta da democracia, do respeito aos tratados e da ligação do Mercosul com o mundo por meio, por exemplo, de um acordo de livre comércio com a União Européia. É difícil deixar de concluir que esta visão está sendo sacrificada por um impulso pueril para abraçar aqueles que vendem a retórica populista do "antiimperialismo". No que se refere a isso, os brasileiros poderão ter um preço a pagar muito em breve.

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