Título: Os desafios da regulação do setor de gás natural no Brasil
Autor: Ronaldo Seroa da Motta
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2006, Opinião, p. A12

A recente nacionalização das reservas minerais na Bolívia e sua repercussão nos investimentos da produção e transporte de gás natural da Petrobras enfatizam ainda mais a importância de um marco regulatório mais dinâmico e eficiente para o setor, com objetivo de diversificar as fontes de suprimento do país.

A concorrência na indústria de gás natural requer a regulação do acesso não-discriminatório à rede de gasodutos, de modo a evitar práticas anticompetitivas por parte proprietário da rede de transporte. A Lei 9.478/9, marco legal do gás natural no país, estabeleceu o princípio do livre acesso à rede de gasodutos de transporte, mas sua regulamentação tem sido objeto de controvérsia. Parte dessa controvérsia se deve à Petrobras, que tem sido a investidora líder na construção dos gasodutos e, por isso, quer dilatar os prazos para o início do livre acesso, entendendo que o adiamento seria uma compensação pelos riscos dos seus investimentos pioneiros. Os prazos de acesso continuam também como questão central do novo projeto de lei em discussão no Congresso Nacional.

A utilização de prazos quase que monopoliza o setor. Uma alternativa mais direcionada para a expansão do setor seria adotar uma tarifa de acesso que incluísse uma forma de compensação financeira para a Petrobras, como contrapartida ao livre acesso, com prazo bem mais curto. O pagamento do acesso à rede de uma empresa seria o custo operacional incorrido pela proprietária da rede para dar o acesso, mais o custo de oportunidade de ceder este acesso, o que representaria uma renúncia ao lucro de uma demanda futura capturada pela firma entrante. Outra opção é estimar os custos de investimentos da rede que a firma entrante compartilharia, mas, nesse caso, há divergências entre considerar os custos dos investimentos realizados pela incumbente ou os custos atuais que as firmas entrantes teriam que realizar. Assim, tarifas de acesso resultariam de alguma forma em transferências de renda entre proprietários e usuários da rede e, portanto, deveriam ser analisadas quanto aos trade offs, entre os benefícios de promover concorrência e custos de inibir a expansão das redes.

Mercados com uso partilhado de estruturas produtivas exigem um marco regulatório, para que os benefícios das economias de rede sejam também desfrutados pelos seus usuários, com maior quantidade e qualidade dos serviços e modicidade nas tarifas. Esta é a tônica da regulação econômica amplamente discutida no livro "Marcos Regulatórios no Brasil", recentemente lançado pelo Ipea.

Nas atividades externas, a integração regional é uma complexidade adicional. O governo brasileiro está agora disposto a aceitar a desapropriação dos investimentos da Petrobras e uma elevação de preços para preservar a integração energética regional. Esta postura estratégica geopolítica é a mesma que orientou as decisões de investimentos da Petrobras na Bolívia e o próprio Gasbol, que, na justificativa de uma integração regional, privilegiou a exploração das reservas bolivianas em detrimento das reservas brasileiras. Se tal integração é um objetivo a ser perseguido, ela não precisa, contudo, ser implementada num ambiente de incerteza.

Os instrumentos regulatórios discutidos nas propostas que estão em pauta no país atualmente podem também ajudar a criar um ambiente propício aos investimentos nacionais no país vizinho, com benefícios para todos os parceiros. Tendo em vista a nacionalização, a atividade da Petrobras ou de qualquer outra empresa no setor energético boliviano será em última instância uma forma de concessão. Assim, mecanismos de regulação econômica serviriam para criar um marco regulatório propício à continuidade destes investimentos. O mesmo se aplica a outras possibilidades de investimentos integradores cogitados para a região.

-------------------------------------------------------------------------------- Governo brasileiro deve abandonar qualquer impulso político de não internalizar aumentos de preço do gás boliviano --------------------------------------------------------------------------------

Para isso, o governo brasileiro terá primeiro que abandonar qualquer impulso político de não internalizar possíveis aumentos do preço do gás boliviano nos preços aos consumidores. A correta precificação do gás importado é crucial do ponto de vista da solidez financeira da Petrobras, que desenvolve outras áreas vitais para o país, igualmente importantes em termos de eficiência alocativa do precioso energético na matriz energética do país.

O caminho mais promissor seria a adoção de contratos que fossem definidos com base numa alocação de risco eficiente e assim revisados a cada cinco anos, de forma a restabelecer as condições iniciais dos contratos. Entre os períodos de revisão, os reajustes anuais dos preços pagos pela Petrobras estariam submetidos a regimes de recuperação simples de custo ou de preços-teto que incluíssem algum fator de produtividade a ser descontado da tarifa.

Neste sentido, há necessidade de consenso entre as partes em torno do fato de que os ganhos temporários aparentemente excessivos da Petrobras, entre os períodos de revisão, fazem parte da remuneração de risco da empresa e são incentivos para o aumento da sua produtividade e, da mesma forma, as perdas temporárias neste período serão totalmente assimiladas pela empresa.

Assim, uma mudança contratual neste momento não deveria reproduzir a rigidez dos contratos atuais, com base apenas em novos preços fixos, pois agindo assim a incerteza e a credibilidade da parceria não seriam restabelecidas. As alterações de percepções econômicas e políticas, neste caso, poderiam resultar novamente numa ruptura de contratos.

A governança desta parceria não deveria também estar isolada nas relações de Estado. Caso não haja na Bolívia um desenvolvimento institucional e legal capaz de criar um ambiente regulatório estável, uma entidade autônoma bipartite, com a participação inclusive de uma agência regional (OEA ou BID), poderia ser estabelecida para que as questões contratuais consensuadas fossem tratadas distintamente das questões diplomáticas.

Em suma, os desafios da regulação econômica do setor de gás no Brasil ainda vão exigir um grande esforço institucional, técnico e jurídico. A compreensão dos princípios da regulação econômica é uma das bases para a concertação destes esforços.