Título: Lula, Banco Central e transição de governo
Autor: Márcio G. P. Garcia
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2006, Opinião, p. A13

Um aspecto positivo pouco ressaltado das denúncias do ex-secretário-geral do PT Silvio Pereira é saber-se quem defendeu o patrimônio público, impedindo que as negociatas denunciadas se magnificassem ainda mais. Segundo a entrevista original do ex-secretário-geral do PT ("O Globo", 07/05/2006), pretendia-se arrecadar R$ 1 bilhão fazendo tráfico de influência junto ao Banco Central para favorecer ilicitamente pessoas envolvidas em ações que lá corriam. "Mas nenhum dos esquemas rolava (...) não deu certo, o BC não acertou as coisas para ele."

É mais uma ironia da história que se saiba justamente pelo ex-secretário do PT - partido que tanto denunciou no passado o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional (Proer) como um conluio para beneficiar banqueiros falidos - que o BC tenha impedido um suposto ato criminoso que beneficiaria, este sim, alguns banqueiros falidos e a cúpula do PT. É justo, portanto, saudar o BC por ter cumprido sua missão institucional tanto no passado, ao defender a higidez do sistema financeiro com o Proer, quanto no presente, ao impedir que se consumasse mais um delito contra o patrimônio público.

Mais razões ainda para louvar o BC tem o presidente Lula. Se as negociatas denunciadas por Silvio Pereira tivessem prosperado, o governo poderia se ver hoje em situação ética mais adversa ainda. Mas a maior razão para que Lula louve o BC é o estado da economia neste ano: inflação controlada com economia em expansão. Este é o quadro com que todo político sonha em ano de eleições.

Não se quer aqui, de modo algum, insinuar que o BC tenha pautado sua ação pelo calendário eleitoral. Ele não tentou fazer isso e, ensina a economia, dificilmente conseguiria caso tentasse. Não obstante, a operação adequada do regime de metas para a inflação pelo BC acabou dando a Lula um trunfo para sua provável campanha de reeleição. A mesma sorte, por exemplo, não teve o ex-presidente dos EUA, George Bush (o pai) em sua malograda tentativa de se reeleger em 1992. Sobre a ação antiinflacionária do Fed, que teria ajudado os democratas a reconquistarem a Casa Branca (um dos motes da campanha de Clinton era: "é a economia, estúpido"), Bush teria comentado sobre Greenspan: "eu o renomeei, ele me desapontou".

Justamente para impedir a interveniência nociva dos políticos sobre a condução da política monetária, no mundo todo, a autonomia do BC tem se mostrado cada vez mais ferramenta indispensável para o bom desempenho macroeconômico dos países democráticos. Há crescente consenso entre os especialistas de que a "... responsabilidade primeira de um banco central é garantir estabilidade de preços e estabilidade financeira. Sem sacrificar tais objetivos, o banco central deve também apoiar as políticas econômicas do governo" (Cukierman, Alex; "A independência do banco central e as instituições executoras de política monetária: Passado, presente e futuro", Documento de Trabalho nº 360, Banco Central do Chile, Abril de 2006).

-------------------------------------------------------------------------------- Negar ao BC autonomia operacional de direito tornou-se um capricho caro, pois isso traz menos crescimento, menos empregos e mais inflação --------------------------------------------------------------------------------

Para que tais objetivos fundamentais de política econômica sejam perseguidos é preciso dar aos bancos centrais autonomia de instrumentos, ou seja, a possibilidade de utilizar autonomamente os instrumentos de política monetária, sobretudo a taxa de juros, para cumprir seus respectivos mandatos atribuídos pelo mundo político. Cabe aos bancos centrais fazer cumprir o desejo da sociedade quanto à inflação. Mas, durante a execução de seus mandatos, agem autonomamente.

Fundamentais para o sucesso desse processo são dois requisitos: transparência na ação e prestação de contas dos resultados. Tais requisitos harmonizam o enorme poder que é dado a um grupo de pessoas não eleitas (no Brasil, o Copom) com o processo democrático.

No Brasil, desde o período FHC, o BC vem gozando de autonomia operacional de fato, mas não de direito. Tal arranjo, embora venha funcionando razoavelmente, tornou-se capricho ideológico muito caro: traz menos crescimento, menos empregos e mais inflação sem qualquer benefício para a economia brasileira. É mais do que hora de avançar e completar o sistema de metas para a inflação com a atribuição de autonomia operacional de direito ao BC.

É na transição de governo que a autonomia do BC torna-se mais importante. É quando aumenta a tentação do partido no poder de interferir na política monetária para maximizar seu potencial eleitoral. Outro efeito, que aqui dominou a eleição de 2002, é o temor de que os novos governantes modifiquem radicalmente a política econômica, assim afugentando investidores. A autonomia operacional de direito do BC contribuiria bastante para mitigar ambos os riscos.

Lula compreendeu bem tais efeitos, e sempre deu apoio político à política macroeconômica consistente de sua equipe econômica. E é precisamente na seara econômica que vem colhendo os principais louros de seu mandato, como atestam as peças publicitárias do PT que vem sendo veiculadas pela imprensa, em contraste com os documentos que vem sendo elaborados nos foros internos do partido.

Mas a queda do ministro Palocci inseriu um novo complicador. Não se sabe quem poderá cumprir o papel de que o antigo ministro se desincumbia com rara habilidade. O atual ministro é visto como temporário e, não se sabe, caso se confirmem as previsões de um segundo mandato de Lula, se nova equipe econômica (aí compreendida também o BC justamente por não gozar de autonomia operacional de direito) poderia tentar implementar um programa econômico alternativo, que refletisse o pensamento predominante no PT antagônico à atual política macroeconômica. Se o BC já gozasse de autonomia operacional de direito, tais temores não atingiriam a execução da política monetária. Em 2007, é preciso que o novo presidente e o novo Congresso Nacional coloquem a autonomia do BC de novo na ordem do dia.