Título: Repercussões da crise do gás boliviano no Brasil
Autor: Lucia Helena Salgado
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2006, Opinião, p. A12

A divulgação do decreto do presidente da Bolívia, Evo Morales, que nacionaliza as reservas de gás e petróleo no país, determinando a ocupação de instalações de multinacionais no país, não pode ter causado surpresa naqueles que acompanham o noticiário.

Há meses o recém-empossado presidente vem anunciando suas intenções, finalmente concretizadas, de forma simbólica, no Dia do Trabalho. A notícia resultou em festa para o povo boliviano e em apreensão para os que acompanham a crise deste lado da fronteira. Se não há que negar legitimidade aos anseios de uma nação por obter os benefícios das riquezas que possui, não se pode deixar de apontar o quão romântico e inexeqüível é o projeto boliviano de autarquia nacional.

O Brasil, felizmente, há décadas, desde o governo Juscelino Kubitschek, abandonou essas pretensões, abraçando o modelo de desenvolvimento associado entre capital nacional, estrangeiro e estatal. Mesmo os governos militares, ciosos de questões de importância para a segurança nacional, aprofundaram esse modelo, que tomou sua forma mais acabada com o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do governo Geisel, que definia explicitamente a parceria e divisão de tarefas entre os diferentes atores na economia brasileira.

A Bolívia não dispõe dos recursos humanos, financeiros e tecnológicos para assumir a gestão e produção da prospecção, refino e distribuição de petróleo e gás natural. Para nos atermos apenas ao mercado do gás, vale lembrar uma particularidade nada irrelevante: não é possível estocar gás; é fruto de um processo contínuo, da extração ao transporte por meio de gasoduto e distribuição, que não permite interrupções e acúmulos de produção. Daí a importância estratégica para a Bolívia, assim como para o Brasil, do Gasbol, o gasoduto Bolívia-Brasil. Dele advém cerca de 54% do gás natural consumido no Brasil, e é ele que transporta quase 90% do gás produzido na Bolívia. Uma interrupção na condução do gás pelo gasoduto representaria perda imediata dessa fonte de energia, com conseqüências desastrosas para ambos.

-------------------------------------------------------------------------------- Regras claras providas por um marco regulatório de qualidade atrairão novos investidores, em especial os expulsos da Bolívia --------------------------------------------------------------------------------

Para se ter uma dimensão da importância do gás natural no Brasil hoje, basta consultar o sítio Gasnet. Em dezembro de 2005, dos 35,4 milhões de metros cúbicos/dia consumidos nos Estados interligados à rede conectada ao Gasbol, 50,59% foram destinados à indústria (de alimentos, vidros, cerâmicas e fertilizantes, dentre outras), 12,96% a veículos automotivos e 29,34% para a geração de energia elétrica. Muito se fala sobre o interesse das empresas brasileiras que têm investido na Bolívia e encontram-se agora ameaçadas. Pouco se disse ainda sobre milhares de brasileiros que converteram seus veículos - em geral de trabalho - para o uso do gás natural, por economia, e de outras tantas indústrias que fizeram o mesmo. A reconversão para diesel, gasolina ou óleo combustível custará muito caro para proprietários de veículos e indústrias e ainda mais para os clientes - nós, consumidores.

O embate que se vê agora, da Bolívia com a Petrobras, envolve dois atores que têm muito a perder nesse jogo: não há alternativas de escoamento do gás por parte da Bolívia, que não detém tecnologia e recursos financeiros para liqüefazer seu gás e exportá-lo - mesmo porque não detém uma saída para o mar - e muito menos condições, em prazo razoável, de construir por conta própria um novo gasoduto para outros clientes, que por sua vez precisariam estar dispostos a negociar com um governo idiossincrático. De sua parte, a Petrobras não dispõe de reservas de gás alternativas, nem poderia importar em escala suficiente gás liquefeito de petróleo (GNL) para gaseificá-lo. O comércio internacional de GNL é intenso, mas o Brasil não dispõe de unidades de gaseificação - apenas um projeto pioneiro em Paulínia (SP), de pequena escala - que permitam a adoção dessa alternativa (a construção de unidades dessa natureza requer cerca de dois anos). Ademais, o GNL, em razão dos custos de transporte e transformação, é alternativa energética cara vis-à-vis o gás natural transportado por gasoduto.

Há um mito muito divulgado de que pouco faltaria para o Brasil tornar-se também auto-suficiente na produção de gás, mas por enquanto trata-se apenas de um belo sonho: a bacia de Santos apenas em 2010 poderá produzir o equivalente ao que hoje é transportado da Bolívia para o Brasil, ou seja, cerca de 30 milhões de metros cúbicos diários. Até lá, espera-se, o país crescerá e com ele a demanda por energia. Logo, não há que se esperar de Santos a saída para a crise detonada pelo decreto presidencial boliviano.

Espera-se que a racionalidade econômica fale mais alto e leve à renegociação dos contratos hoje vigentes. Na melhor das hipóteses, tudo se resolverá com uma significativa imposição de um sobrepreço ao gás. Na pior das hipóteses, além dos danos econômicos, também virão aqueles associados à insegurança jurídica, da qual a América Latina procura se afastar construindo marcos regulatórios estáveis.

Duas lições positivas, contudo, podem ser retiradas desse episódio: em primeiro lugar, o governo brasileiro e os que o sucederem devem cercar-se de extrema cautela antes de abraçarem novas alianças políticas envolvendo investimentos públicos e privados, notadamente com governos de matriz populista e nacionalista. Sim, é do gasoduto ligando o Brasil à Venezuela que se está falando. Em segundo lugar, mais do que urgente é a definição de um marco regulatório para o mercado do gás. Transitam no Congresso atualmente dois projetos de lei, um de autoria do senador Rodolpho Tourinho - aprovado na última quinta-feira na Comissão de Constituição e Justiça do Senado - e outro apensado a ele, de autoria do governo. Regras claras providas por um marco regulatório de qualidade atrairão novos investidores, justamente aqueles que estão sendo expulsos da Bolívia. Apenas com muito investimento, a começar já, e não apenas da Petrobras, o Brasil terá chance de alcançar em prazo razoável sua auto-suficiência em gás natural, pilar indispensável para um projeto de investimento sustentado.