Título: Petrobras, soberania e geopolítica
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2006, Opinião, p. A13

Parabéns ao presidente Lula por sua declaração. Confirmou a única dimensão de seu governo consistente com o programa original do PT: a política externa. Qualquer ensaio de truculência seria jogar uma pá de cal sobre o sonho da integração sul-americana. O Brasil seria, para os vizinhos, uma potência subimperialista.

A nota destoante é o anúncio que a Petrobras irá recorrer à Justiça Internacional, com sede em Nova York, contra o decreto presidencial boliviano. A medida será tomada porque a Petrobras é uma empresa "no mercado", com ações na Bolsa de Valores de Nova York e, como terá perdas, "deve satisfação aos seus acionistas". Ao se alinhar aos padrões de comportamento do mercado de valores internacional, a Petrobras cancela, em parte, o mérito geopolítico da declaração do governo brasileiro. A Petrobras está mais preocupada em atender aos especuladores da Bolsa de NY do que atuar como instituição do Estado nacional brasileiro. Esta é a visão neoliberal: por esta doutrina, a Petrobras é uma petroleira como as outras; deve competir em nível mundial. Seu desempenho é medido pelo valor bursátil de suas ADR e pelos dividendos que distribui.

Petróleo não é commodity. É o combustível dos motores a explosão. Tem milhares de subprodutos. Constitui o pilar das estruturas de produção e é basilar do padrão de vida das economias modernas. Por isto é recurso estratégico que orienta, por excelência, a geopolítica das potências. Estados Unidos, Japão, União Européia e China não têm petróleo suficiente para suas respectivas economias. O desequilíbrio americano é brutal; consome quase um terço do petróleo do mundo e é incapaz de produzir sequer a metade do que consome. O cenário futuro é pior, pois a curva de descobertas de petróleo tem caminhado, nos últimos 20 anos, cada vez mais abaixo da curva de consumo mundial. A geopolítica do império americano é referenciada ao petróleo. Por isso está, armado, no Iraque; por isso apóia a dinastia saudita; por isso rosna em relação ao Irã; por isso cobiça todos os "países do ão" (Cazaquistão, Azerbaijão etc).

-------------------------------------------------------------------------------- É temerário para um país como o Brasil, que não é nem pretende ser potência e não quer ser imperialista, entrar na zona do furacão energético --------------------------------------------------------------------------------

Durante os anos 90, o neoliberalismo fez tudo para abalar a Petrobras como instrumento do Estado nacional. Sem coragem de privatizá-la com os "martelinhos", buscou corroê-la. Desmembrou-a e privatizou a petroquímica. Retirou-lhe, por Emenda Constitucional, o monopólio das reservas de petróleo e gás. Passou a licitar, para empresas estrangeiras, concessões nos campos potenciais brasileiros e lhes conferiu o direito de exportar petróleo. Simultaneamente, impulsionou a Petrobras a competir por reservas em outros países. Lançou, irresponsavelmente, o Brasil no caldeirão da economia mundial do petróleo.

Ao invés de desfrutarmos da vantagem estratégica da auto-suficiência, estaremos sujeitos às chuvas e trovoadas da geopolítica imperial. A decisão tucana levou a Petrobras para a Bolívia, país mais pobre da América do Sul, com a imensa maioria de sua população (70%) em condição miserável. A Bolívia é traumatizada, historicamente pelo saque de suas riquezas naturais. O Potosi boliviano, o maior depósito de prata do mundo, se esgotou em fins do século XVIII. Nada ficou na Bolívia. Posteriormente, com o uso da folha estanhada, o altiplano desenvolveu a extração do estanho. Dois bolivianos - Patiño e Aramayo - e um argentino - Hotchild - dominaram as minas e, a partir da Bolívia, passaram a controlar o cartel mundial de estanho; praticamente nada ficou na Bolívia. O país tem a segunda maior reserva de gás natural de petróleo do continente, apenas inferior à Venezuela. Na era tucana, a Petrobras foi para a Bolívia. Nossa empresa financiou e construiu o trecho boliviano do gasoduto e pesquisou gás, e teve êxito nos campos de San Alberto e San Antonio. Após 2003, a Petrobras tem oferecido apoio para a montagem de usinas termelétricas e a construção de um pólo gás-químico na Bolívia. Contudo, o povo boliviano percebe a Petrobras como mais um "vampiro" a sugar suas riquezas.

A Federação Única de Petroleiros apoiou a decisão boliviana. Seu coordenador declarou: "Nós, brasileiros, também lutamos pela manutenção e proteção das nossas reservas". O Sindicato dos Petroleiros do Estado de São Paulo afirmou que "a posição dos trabalhadores brasileiros é de apoio integral à decisão do presidente boliviano". Ambas entidades, corretamente, colocam a questão em garantir o abastecimento e renegociar o preço do gás boliviano. Importamos da Bolívia 26 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Para aquele país é fundamental a compra brasileira. Podemos suprir com hidroeletricidade o consumo termelétrico de gás. O diretor da Petrobras, Guilherme Estrela, lembra que não tem sentido estimular o consumo veicular de gás natural, pois o Brasil tem sobra de gasolina, que é exportada. A Bolívia contribui apenas com 2% da rentabilidade da Petrobras, apesar de representar 15% do PIB daquele país paupérrimo. Em 1937, a Bolívia nacionalizou a Standard Oil, depois de participar da Guerra do Chaco (1932-1935), na qual morreram centenas de bolivianos e na qual o país perdeu 200 mil Km² do Chaco para o Paraguai; na ocasião descobriram um oleoduto clandestino. Em 1969, a Bolívia desapropriou a Golf Oil. O Brasil pode renegociar US$ 1,5 bilhão que lá investiu, em troca parcial por gás.

A Petrobras deveria recuar para o Brasil. As licitações deveriam ser interrompidas. Deveríamos, como a China, guardar o nosso petróleo para os tempos difíceis que se avizinham. A Petrobras, se lançando no mundo como uma petroleira voraz, e a permissão para que empresas estrangeiras extraiam e exportem petróleo, joga o Brasil no caldeirão geopolítico. A auto-suficiência de petróleo dá ao Brasil uma imensa vantagem estratégica. É temerário para um país que não é e nem pretende ser potência, e que não quer ser imperialista, entrar na zona do furacão energético.