Título: Governo pode usar PPI e fazer superávit menor
Autor: Mônica Izaguirre e Arnaldo Galvão
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2006, Especial, p. A14

O Ministério da Fazenda considera, pela primeira vez, a possibilidade de efetivamente abater da meta de superávit primário do governo central o valor do Projeto Piloto de Investimentos (PPI). Embora esse mecanismo de estímulo a investimentos prioritários esteja previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), sua utilização nunca foi verdadeiramente cogitada na gestão do ex-ministro Antônio Palocci. "É possível. Está na regra do jogo", disse ao Valor o secretário do Tesouro Nacional, Carlos Kawall. Ruy Baron/Valor Carlos Kawall, secretário do Tesouro Nacional: "Estamos olhando as receitas para definir o ajuste das despesas, há um esforço de preservar investimentos"

Neste ano, a meta fiscal de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB) que o governo persegue para todo o setor público não desconta o PPI. Se ele for descontado - possibilidade admitida pelo secretário - o superávit primário ficaria em 4,1% do PIB. Segundo Kawall, o governo poderá lançar mão da prerrogativa legal de descontar o PPI para aumentar sua execução. "A orientação é não repetir a baixa execução de 2005", quando foram desembolsados, efetivamente, só R$ 1 bilhão, disse o secretário.

Criado a partir de discussões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o PPI foi concebido justamente para compatibilizar as metas fiscais com a necessidade de investimentos públicos considerados essenciais para a infra-estrutura econômica do país. Na prática, porém, as despesas com obras do PPI vêm sendo tratadas como quaisquer outros gastos na apuração do resultado fiscal primário.

Kawall informa que poderão ser gastos este ano até R$ 4 bilhões com o PPI, incluindo R$ 1 bilhão de restos a pagar de 2005. Esse é também o valor que a LDO permite não considerar como despesa na apuração do resultado primário. Assim, em vez de R$ 70,5 bilhões, o superávit necessário ao cumprimento da meta seria de R$ 66,5 bilhões, no âmbito do governo federal e suas empresas estatais, já considerado o esforço extra para compensar possível frustração de meta nos Estados e municípios.

Trazido por Guido Mantega, há pouco mais de um mês no cargo, Carlos Kawall disse ainda que as eleições não representam o maior risco para administração da dívida pública este ano. A preocupação maior é com o cenário externo e não interno. A seguir, a entrevista concedida ao Valor.

Valor: O governo já confirmou que vai contingenciar o orçamento deste ano. Sabe-se que a ordem de grandeza do corte é de R$ 20 bilhões. Quanto é necessário cortar exatamente para se assegurar o cumprimento da meta de superávit primário?

Carlos Kawall: Estamos olhando as receitas para definir o ajuste das despesas. Se fosse algo linear, passar a régua, seria fácil. Mas não é. Há um esforço de preservar investimentos e programas prioritários do governo.

Valor: Como o corte vai se distribuir entre investimento e custeio?

Kawall: É preciso olhar caso a caso. A discussão não envolve só os ministérios da Fazenda e do Planejamento. Envolve também outros ministérios. Temos que fazer isso com o menor custo possível.

Valor: Para compensar o risco de Estados e municípios não conseguirem superávit primário de 1,1% do PIB este ano, o governo federal aumentou de 3,15% para 3,35% do PIB a sua parte na meta consolidada do setor público (4,25% do PIB). Esse esforço extra de 0,2% do PIB ficará todo com o Tesouro, todo com as estatais ou será dividido?

Kawall: No primeiro decreto de programação financeira ficou implícita uma divisão meio a meio. Mas isso pode mudar no próximo decreto. Trabalhamos com a meta consolidada do governo com as estatais, cujo valor nominal é de R$ 70,5 bilhões.

Valor: O decreto de contingenciamento que está para ser editado é só do orçamento fiscal. Isso não os obriga a definir agora a partilha do ajuste extra?

Kawall: Sim. Estamos analisando a questão.

Valor: Da última vez que o sr. foi ao Congresso, ouviu uma queixa dos deputados: embora a LDO permita, o governo nunca abateu da meta de resultado primário o valor do Projeto Piloto de Investimentos (PPI). Como isso será tratado na hora de definir o tamanho do corte orçamentário? O governo vai continuar ignorando a regra e a perseguir a meta cheia, de 4,25% do PIB?

Kawall: Normalmente, é feito assim. Nunca trabalhamos com a hipótese de utilizar esse mecanismo que está previsto na lei. As trajetórias de dívida e todos os exercícios feitos consideraram fazer os 4,25% sem utilizá-lo. Neste ano, o valor que perseguimos não desconta o PPI. Mas é possível. Está na regra do jogo. Se o PPI vai ser descontado ou não, o governo está analisando. É uma prerrogativa da lei. Há uma intenção de preservar investimentos. Em 2005, a regra da LDO não foi utilizada, na prática, porque os desembolsos do PPI foram baixos, só R$ 1 bilhão. Não fez muita diferença.

Valor: Qual é a perspectiva para a execução do orçamento do PPI este ano?

Kawall: Podemos fazer até R$ 4 bilhões durante todo o ano. Ficamos com R$ 1 bilhão de restos a pagar do ano passado. A orientação do governo é não repetir a baixa execução que ocorreu em 2005. Falei isso aos deputados. O PPI é um espaço de preservação de investimentos. Até o fim de abril, a previsão era executar R$ 900 milhões.

Valor: Os resultados fiscais até março levaram parte do mercado a temer descumprimento de meta. Como foi abril? A meta do primeiro quadrimestre foi atingida?

Kawall: Ainda não fechamos as contas, mas estamos confiantes de ter cumprido a meta quadrimestral de R$ 28,7 bilhões no governo federal, com estatais. Não navegamos às cegas.

Valor: No Congresso, o sr. falou em uma projeção de déficit nominal do setor público de 3% do PIB. O Banco Central trabalha com 2,75%. Sua previsão é mais pessimista com a conta de juros?

Kawall: Temos o que está na LDO, algo em torno de 3%, com base em números do ano passado. Se for 2,75%, melhor ainda. Vai a favor do argumento que eu estava dando. A trajetória fiscal é de melhora.

Valor: Em 2005, o governo chegou a iniciar uma discussão de ajuste fiscal de longo prazo, com base em fixação de metas de resultado nominal. Esse debate morreu?

Kawall: Até este momento, não participei de nenhuma discussão ligada a essa questão. Não tem essa discussão do nominal como meta. É possível que, algum dia, isso vire realidade no Brasil. Assim que é, em geral, nos países mais estáveis.

Valor: O próximo governo deveria pensar nisso?

Kawall: Não tenho dito nada relativo ao próximo governo. É uma avaliação que tem que ser feita por quem vier a assumir o governo. Não me caberia recomendar esse tipo de coisa. Hoje, não há essa discussão.

Valor: O projeto de LDO para 2007 manda reduzir as despesas correntes como proporção do PIB. Como conseguir isso se o grosso desses gastos são despesas obrigatórias que aumentam automaticamente e têm crescido mais que o PIB?

Kawall: É por isso que nós colocamos uma proposta para o Congresso de redução de 0,1% do PIB ao ano. Essa é uma meta realista dentro da dificuldade que você mencionou. Foi uma indicação do governo para evitar a trajetória crescente. A idéia é mostrar que não há intenção de elevá-las e, levemente, revertê-las, para preservar o espaço de investimento. Uma queda abrupta das despesas correntes, com base em hipóteses de mudarem quatro ou cinco regras do jogo, não seria realista.

Valor: Há quem entenda que o controle de despesas correntes não seja possível com o mero manejo do Orçamento. Não são necessárias mudanças mais profundas?

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Kawall: Entramos de novo no terreno de 2007 e do médio e longo prazos. É uma decisão a ser tomada pelo próximo mandatário. Quem entrar terá um orçamento feito com esses parâmetros, dentro da institucionalidade vigente e vai ter esse cenário pela frente e um ciclo político pela frente. Não cabe ao secretário do Tesouro ir além de 2006 e da sua execução orçamentária. Não fiz isso na Comissão Mista de Orçamento e mantenho essa postura.

Valor: Em 2002, a campanha eleitoral gerou muita volatilidade nos mercados de juros e câmbio, dificultando a rolagem da dívida pública mobiliária federal. Como o Tesouro vai administrar a dívida até as eleições de outubro?

Kawall: De maneira cautelosa. É preciso ter alguma reserva de caixa, para que, numa situação inesperada, tenhamos capacidade de resposta. Temos reserva para ficar de quatro a cinco meses só fazendo resgate de títulos, sem emitir novos. Mas, diferente de 2002, não acho que as eleições deste ano sejam o maior fator de risco para a gestão da dívida pública. Estamos mais atentos aos riscos externos do que ao risco eleitoral neste momento. E acho que essa é a leitura do mercado.

Valor: E qual é o maior fator de risco?

Kawall: A trajetória (de alta) dos juros norte-americanos, a questão do petróleo, o risco geopolítico, que desde os últimos anos é maior.

Valor: O que lhe faz acreditar que não haverá turbulência com a campanha eleitoral?

Kawall: Primeiro, um fato muito objetivo que é a situação das contas externas. Mudou completamente desde 2002. Melhoraram o superávit comercial, a posição das reservas cambiais... O programa de financiamento da dívida externa já está equacionado até meados de 2007. Tudo isso permitiu pagar antecipadamente o FMI, o Clube de Paris e recomprar os bradies. O quadro de necessidades de financiamento externo é completamente diferente daquele de 2002.

Valor: O sr. acha que não haverá turbulência independentemente do fato de um candidato subir ou descer nas pesquisas?

Kawall: A maneira como o mercado enxerga essa eleição é diferente. Como nossas necessidades de financiamento externo estão tranqüilas, não estamos vendo o tipo de movimentação que ocorreu em 2002 com as pesquisas. O mercado olha com mais tranqüilidade as propostas de política econômica dos principais candidatos. A situação é tão mais confortável do que já foi, que, mesmo atravessando um período eleitoral, estamos promovendo uma mudança qualitativa na estrutura da dívida. Estamos alongando prazos, reduzindo a parcela indexada à taxa Selic, aumentando a participação dos títulos prefixados e corrigidos por índice de preço. Desde o início do ano, o Tesouro já fez muito progresso em relação às metas do Plano Anual de Financiamento (PAF).

Valor: A obtenção de resultados próximos a metas que só precisam ser atingidas no fim do ano não sugere necessidade de ajuste no PAF?

Kawall: O PAF é a regra do jogo. Não está no mesmo nível da meta de resultado fiscal primário, pois não é estabelecido por lei . Mas não deixa de ser um compromisso muito forte do Tesouro Nacional. Os agentes do mercado se guiam por essas variáveis. Então, nossa intenção é seguir os limites já estabelecidos. Não podemos ir com uma velocidade muito maior, pois a mudança na estrutura da dívida pública implica, para o mercado, aumento do volume de risco associado a títulos prefixados.

Valor: O plano de captações externas também continuará a ser executado durante o período mais quente de campanha eleitoral?

Kawall: Do total de US$ 9 bilhões previstos no plano de financiamento da dívida externa para 2006 e 2007, já foram captados US$ 5,3 bilhões. Os US$ 3,7 bilhões que faltam podem ser captados até o fim do ano que vem . Isso vai ser feito sem muita pressa, mas não por causa das eleições. Logo que entrei aqui, começou a haver volatilidade da taxa de juros norte-americana. Estamos num momento de especulação sobre os próximos passos do Fed (Federal Reserve). Então, vamos esperar essa poeira baixar antes de seguir em frente.

Valor: Mas ainda pode haver alguma emissão do Tesouro no exterior este ano?

Kawall: Sim. O programa está em curso. É uma questão de oportunidade. Dependendo de como o mercado vai se comportar até o fim do ano, a gente pode avançar nesse cronograma. Na melhor hipótese, podemos completar este ano (o financiamento de vencimentos de 2006 e 2007). Se não for possível, ficará um pedaço para o ano que vem. A situação é confortável. As reservas cambiais do Banco Central são robustas.

Valor: O nível das reservas cambiais já atingiu um nível ideal?

Kawall: Essa é uma decisão do Banco Central. Não cabe a mim dizer o nível ideal. Mas acho que a relação custo-benefício da política de acumular reservas ainda é amplamente favorável. Não há, por parte do Tesouro, nenhuma restrição ao que vem sendo feito pelo Banco Central. Quando recompramos dívida externa, gastamos reserva. Esse é um dos motivos da política de acumulação.

Valor: O programa de recompra de dívida externa também seguirá normal, apesar das eleições?

Kawall: Há uma concentração de vencimentos da dívida pública externa entre 2006 e 2010. A recompra, que envolve papéis em dólar e em iene que vencem nesse período, melhora o perfil dos pagamentos e os indicadores de solvência externa do país. A mudança que já ocorreu no perfil da dívida externa permitiu que o Brasil conseguisse da Standard & Poors o nível de classificação de risco BB, que a gente nunca teve antes. Temos que continuar progredindo nesse terreno, em busca da classificação de investimento. Países que já têm essa classificação de risco têm posições de dívida externa e de reservas cambiais melhores do que as nossas.

Valor: O que pode atrapalhar os planos do Brasil nesse sentido?

Kawall: O crescimento menor da economia mundial seria um grande problema. Também preocupam os juros nos Estados Unidos. Já houve um grande movimento de alta, mas, felizmente, conseguimos nesse período evitar maior impacto no nosso mercado de câmbio no fluxo de capitais para o país.

Valor: Voltando à dívida interna, como o Tesouro está vendo o mercado secundário de títulos federais?

Kawall: 0 que há de novo é o ingresso do investidor estrangeiro, estimulado pela isenção de Imposto de Renda. Isso facilitou uma estratégia de alongamento de prazos, sobretudo dos papéis vinculados ao IPCA, com vencimento até 2045, e também de prefixados. Na semana passada, foram emitidos papéis para vencimento em 2014, só dois anos a menos do prazo do que foi emitido no exterior, para 2016.

Valor: O Tesouro tem trabalhado para reduzir a dívida indexada à taxa Selic. Não haverá mais nenhuma emissão de LFT?

Kawall: A decisão é tomada a cada mês. Em maio a decisão é não colocar.

Valor: A participação das LFTs na dívida fechará o ano mais perto do teto ou do piso da banda prevista no PAF (38% a 45%) ?

Kawall: Mais próxima do limite inferior. Mas não dá para fazer isso a qualquer preço.