Título: Aumentar e repartir o bolo
Autor: Vera Saavedra Durão
Fonte: Valor Econômico, 06/12/2004, Brasil, p. A2

As comemorações do governo por conta do resultado do PIB do terceiro trimestre, divulgado pelo IBGE na semana passada, consolidando as expectativas de um crescimento em torno de 5% em 2004, têm sua procedência, já que o país vem crescendo a taxas medíocres há dez anos. A pergunta que não quer calar é quanto à persistência dessa trajetória por conta dos juros altos e da recuperação muito tímida dos rendimentos do trabalho. Outra questão ainda sem resposta é se a estratégia da retomada do crescimento, adotada nestes dois primeiros anos da administração petista, continuará esquecendo, como o fez até agora, que por si só o aumento do PIB sem desenvolvimento e distribuição de renda não reduz a desigualdade, o maior problema do Brasil. É crença comum nos governos e mesmo nos meios acadêmicos, que o crescimento econômico é bom para as empresas e também para os pobres. Por conta disso, o aumento do PIB tem sido usado como o principal mecanismo para reduzir a pobreza no Brasil. Mas essa receita não tem dado muito certo, já que o país tem crescido pouco e de forma intermitente. Com isso, a redução dos níveis de pobreza acaba sendo insuficiente, dada a superdimensão de pobres. Em seu trabalho "Crescimento e Pobreza", Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea, calcula que 40% da população brasileira vive hoje com renda familiar per capita inferior a R$ 5 por dia, o que não dá para cobrir despesas com alimentação, transporte, moradia, educação e saúde. Nesse cenário, ele realça que o fundamental não é saber se o crescimento é capaz de erradicar a pobreza, mas quanto crescimento será preciso para se chegar lá. "Quando há muita pobreza, pode ser preciso crescer muito para que ela deixe de existir", observa. Nos próximos 20 anos, se o Brasil reproduzir o crescimento das duas décadas passadas, a proporção de pobres ainda abarcará 25% da população. Para o país ter uma proporção de pobres inferior a 15%, o que ainda é muito, será preciso repetir o milagre econômico da década de 70, época em que o país chegou a crescer em torno de 10% ao ano, chama a atenção Medeiros. Para o pesquisador do Ipea, o termo "milagre" dá uma boa idéia da tarefa hercúlea que espera os governos atuais e futuros se optarem por erradicar a pobreza via PIB. Medeiros conclui em seu trabalho que o crescimento, sozinho, não será suficiente para desatar o "nó górdio" da desigualdade brasileira. Uma retomada do crescimento no curto prazo, como a que estamos presenciando, não terá efeitos distributivos relevantes, como os dados do PIB de 2003 divulgados pelo IBGE comprovam: a participação da renda do trabalho no PIB encolheu de 45% para 35% entre1993 e 2003, enquanto o excendente das empresas saltou de 35% para 43%. Ou seja, o PIB evidencia perdedores e ganhadores e joga por terra a utopia de que no crescimento pobres e ricos ganham.

Crescimento não basta para reduzir desigualdade

"A alternativa a apenas aumentar o bolo é reparti-lo melhor", diz Medeiros. Ele assinala que a renda no Brasil é tão concentrada - 10% das famílias mais ricas abocanham 49% da massa de rendimentos - que a transferência de um mínimo que seja das elites para os pobres já seria bastante para beneficiar uma grande massa de miseráveis. O economista Adhemar Mineiro, em recente estudo, "Desigualdade e Democracia: Algumas Idéias sobre os Limites da Inclusão no Brasil", procura explicar a persistência da desigualdade no país, amparada pelo que denomina de "rede de solidariedade dos ricos", que conta também com atributos não-produtivos como as redes de relacionamento pessoal, capital cultural, parentesco e outros elementos que os eternizam. Na sua análise, num país de concentração de renda brutal nas mãos dos ricos, como o Brasil, o problema da pobreza decorre da desigualdade. A manutenção desse status quo, além do fenômeno da renda, deriva do fato de que os proprietários de ativos no país têm capacidade de gerar poder, garantindo sua riqueza e a perpetuação da possibilidade de continuar gerando renda a partir da posse de seus bens. Isto explica, por exemplo, a dificuldade de se fazer a reforma agrária no Brasil. Outro quesito que dá vantagem aos ricos, destacado por Mineiro, é a alta desigualdade dos rendimentos do trabalho, o que gera uma força de resistência a políticas distributivas da parte dos setores de rendimentos mais elevados. "Uma evidência dessa resistência está ligada ao salário mínimo, que tem efeito redistributivo forte no setor informal", explica. A gestão dos recursos do Estado também colabora para manter a desigualdade. O orçamento público, define Mineiro, é a transformação em cifras da vontade política e das relações de força em sociedade. Nesse quesito, lembra a tributação extremamente regressiva, com impostos que oneram mais a classe média e os pobres. E ressalta o critério preferido de corte de gastos, que sempre recai nos gastos sociais. Toda esta máquina evidencia um processo contínuo de transferência de recursos, solidificando uma situação estrutural de poder político avessa a mudanças e capaz de tudo mudar para nada mudar e até mesmo transformar o inimigo visceral de ontem no aliado de hoje.