Título: Corte do juro não garante ambiente para reduzir dívida atrelada à Selic
Autor: Pinto,Lucinda
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2011, Finanças, p. C8

Ter uma taxa de juros baixa é pré-condição para que o governo consiga cumprir o objetivo de trocar a parcela de dívida atrelada à Selic por papéis prefixados - considerados mais "saudáveis" dentro da composição do endividamento público. Mas o corte de 0,5 ponto percentual na taxa Selic promovido na última reunião do Copom não garante, necessariamente, uma transição fácil. Para convencer os investidores a trocarem as LFTs que carregam em suas carteiras por títulos prefixados, será necessário garantir que a inflação estará sob controle pelos próximos anos - convicção que, hoje, não existe entre especialistas.

Segundo informou o Valor, o governo tem como objetivo reduzir a fatia das LFTs, que hoje está próxima a 32% do total da dívida, para algo entre 5% e 6% até 2014. Esse é um objetivo ambicioso e que, na avaliação dos especialistas, pode custar caro aos cofres públicos ou, como efeito colateral, afetar o prazo médio da dívida - outro importante indicador da consistência da dívida. Outro efeito temido por esses analistas é a transferência dos recursos que hoje estão em títulos pós-fixados para as operações compromissadas do Banco Central - que pagam uma taxa próxima à Selic e têm curtíssimo prazo.

"O investidor que compra um papel de longo prazo tem de acreditar que a inflação ficará perto do que o governo está prevendo. Isso porque, se a inflação for maior, a sua remuneração real será menor", explica o especialista em contas públicas, Fabio Giambiagi. "Qualquer estratégia que vise substituir títulos de longo prazo, para não onerar o Tesouro, tem que vir acompanhada de um compromisso inequívoco do cumprimento da meta de inflação."

A definição da taxa de juros que um título público vai pagar ao investidor é feita por meio de leilões, ou seja, segue as regras da oferta e demanda. No caso das LFTs, o que se discute nessa operação é o ágio dessa taxa em relação à Selic. Mas o risco de perda, ao longo dos anos, com as possíveis oscilações da taxa de juros, não existe. Já no caso dos títulos prefixados, as taxas vão seguir o comportamento de mercado. Se o investidor compra um papel hoje, enxergando riscos de os juros básicos da economia terem de ser elevados no futuro por causa da inflação, então, ele pedir uma remuneração mais elevada. Ou então pode preferir comprar apenas papéis com vencimento no curto prazo, onde fica mais fácil projetar o comportamento da inflação.

Mas há também o efeito da demanda. Se o Tesouro for forçado a ampliar a oferta de títulos públicos prefixados, em substituição ao volume de quase R$ 500 bilhões de LFTs que estão nas mãos do mercado, corre o risco de desvalorizar esse papel e, como consequência, pagar uma taxa mais salgada para os investidores. E, nesse mercado, o que é remuneração para o mercado, é custo para o Tesouro.

"Tudo tem um "trade-off"", observa um especialista. "O que é mais nocivo para a economia: ter uma fatia maior de papéis pós-fixados ou concentrar esse endividamento no curto prazo ou, pior, nas operações compromissadas, o que gera um risco elevado em tempos de turbulência?"

Reduzir o estoque de LFTs, papéis criados nos tempos de hiperinflação como instrumento de captação de recursos pelo governo, é um desafio considerado nobre e fundamental. E que já tem sido perseguido pelo Tesouro Nacional nos últimos onze anos.

"Desde a tensão que sacudiu os mercados às vésperas da eleição que levou o presidente Lula ao Planalto em 2002, o estoque de LFT caiu praticamente à metade, passando de aproximadamente 60% do total para cerca de 30%", observa Carlos Eduardo Gonçalves, professor da FEA/USP.

Desde 2007, entretanto, a parcela das LFTs resiste acima dos 30%. As crises no exterior afetaram o apetite por risco dos investidores e elevaram o prêmio exigido para a compra de títulos com taxa pré-estabelecida. Mas o Plano Anual de Financiamento (PAF), que estabelece as diretrizes da condução da dívida pública, mantém como um dos objetivos de médio prazo a redução dessa fatia. Segundo o documento, o Tesouro considera como "ponto ótimo" um volume inferior a 20% do total da dívida, que pode ser alcançado nos próximos cinco anos.

Até lá, será aberta uma "janela de oportunidade", com o vencimento de quase 50% desse estoque entre 2013 e 2014. Mas, para que essa chance possa ser aproveitada, será preciso que o governo avance em outras questões - como no compromisso com o controle de gastos e no cumprimento da meta de inflação - para que os investidores aceitem outro tipo de papel no lugar das LFTs.

Gonçalves pondera que o governo sempre teve receio de trocar a LFT por papel com remuneração prefixada, uma vez que o juro fica engessado por um período. "Se o governo acredita na queda do juro, ainda que mais adiante, a LFT é um papel mais adequado por ser pós-fixado. Para um investidor correr o risco de travar sua perspectiva de ganho, com título prefixado, ele sempre exigirá taxas de juros mais elevadas, o que significa custo adicional para o Tesouro, que é o emissor da dívida brasileira", pondera o economista que lembra, ainda, do interesse dos investidores em aplicações pós-fixadas em tempos de crise. Ele reconhece que a redução da dívida "selicada" ajuda na gestão da dívida pública. Mas não está convencido de que o governo conseguirá reduzir substancialmente essa fatura.

José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator e professor da FEA/USP, considera louvável a intenção da presidente Dilma de reduzir a parcela da dívida pública indexada à Selic. "Mas precisa ver se é factível", diz o economista, para quem a indexação pela taxa básica de juros remete à questão: "O que vem primeiro? O ovo ou a galinha?".

O argumento utilizado por uma corrente de economistas é que, quando a economia tem uma parcela muito grande de ativos indexados à taxa de juro, a política monetária perde força. Isso porque o juro mais alto acaba gerando riqueza nas mãos dos investidores, em vez de gerar um arrocho. Só que a substituição desse papel por títulos prefixados, na opinião do estrategista da Nomura Securities, Tony Volpon, pode ter um efeito exatamente contrário: se o governo decide reduzir os juros, também eleva o ganho daqueles que detêm títulos prefixados. "Isso mostra que uma mudança mais radical no perfil da dívida só poderá ocorrer quando os juros já estiverem baixos", observa. "Não é o fim da indexação que poderá, por si só, viabilizar a queda da Selic."

Gonçalves, da FEA/USP, concorda. Ele diz que a "bala mágica" para a queda do juro no Brasil não é a desindexação da dívida, mas o fim do crédito subsidiado. Ele entende que, se o governo fechasse o BNDES e acabasse com o crédito direcionado, o juro cairia consideravelmente. Até porque a taxa Selic não representa, de fato, o custo do dinheiro no país. O economista lembra que cerca de 40% do crédito brasileiro paga juros, grosso modo, de 10% ao ano, por ser subsidiado. A outra parcela, de aproximadamente 60% do total do crédito, é destinada a operações livres que são contratadas com juro estimado em 30% ao ano.

"O estoque da LFT representa cerca de 15% do PIB; mas o crédito do BNDES responde por 7% e o crédito direcionado para habitação, 4% do PIB. Não acredito que seja o volume de LFTs o grande vilão da indexação", afirma um especialista. "Sem falar no volume de títulos privados indexados ao CDI, que está perto de R$ 1,4 trilhão."

Para Marcio Garcia, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, é fundamental que as boas intenções do governo na área fiscal saiam do papel. O ciclo de corte do juro básico iniciado na quarta-feira até ajuda a desestimular o apetite pelas LFT. Mas o receio de muitos analistas de que a inflação ainda não foi debelada pode dar vida curta a esse novo perfil de endividamento. "Paradoxalmente, o governo pode acabar atingindo uma das metas que se propôs fazendo a coisa errada. Uma das consequências da decisão [do Copom] é que a Selic passe a não mais representar um refúgio", avalia. "É preciso mexer na estrutura da economia para criar condições para o juro ser menor sem fazer a inflação voltar, e isso passa pela questão fiscal. O resto é perfumaria."

O ex-secretário do Tesouro Carlos Kawall, atualmente economista-chefe do J. Safra, destaca a necessidade de sair da "cultura do CDI e buscar outra referência. "Pode ser a própria taxa pré, como no modelo americano, ou flutante de 3 ou 6 meses, no estilo da Libor."