Título: A agenda que falta
Autor: Graziano da Silva,José
Fonte: Valor Econômico, 19/09/2011, Opinião, p. A15

Em 1933, quando foi eleito pela primeira vez em meio a um cenário de terra arrasada herdado do crash de 29, o presidente americano Franklin Roosevelt afrontou o senso comum e o fatalismo ao dizer: "Temos 15 milhões de pessoas passando fome. Vamos dar de comer a elas. É obrigação do governo providenciar trabalho para que eles mesmos voltem a sustentar suas famílias".

Essa elaboração aparentemente singela marcou uma ruptura entre a maré vazante e o ciclo afluente da maior economia do planeta no século XX. É do que precisamos agora.

Em 2003, quando o presidente Lula tomou posse, o Brasil não vivia nada parecido com a crise de 29. Mas havia fome também, embora dizê-lo insultasse a consciência culpada de alguns. O programa Fome Zero deu a partida a um conjunto de políticas de segurança alimentar que aos poucos se desdobrou em eixos autônomos de um amplo programa de crescimento com inclusão social e produtiva.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) foi criada em 1945 com a certeza de que uma vez estabelecida a paz criavam-se as condicoes necessárias - embora não suficientes - para se erradicar a fome. Seus fundadores sonhavam em libertar a humanidade da luta pela sobrevivência diária garantindo suas necessidades básicas.

Vencer as provas cruciais da história requer estreita aliança entre a consciência dos seus desafios e uma ideia-força, que traduza esse discernimento em esperança, projeto e mobilização ecumênica das energias da sociedade.

Desde os anos 60 a produção agrícola mundial triplicou. A população duplicou. E o fato desconcertante é que quase um bilhão de seres humanos ainda padece de fome. Para acabar com essa grande vergonha do nosso tempo é preciso ir além da aritmética produtiva.

Neste momento, a luta contra a fome se destaca como o mais convergente, abrangente e urgente de todos os consensos que podem restituir à comunidade internacional um sentido de coordenação e solidariedade política, de que ela tanto se ressente.

Hoje, como ontem, o primeiro desafio é ressuscitar o espírito da solidariedade.

Doações e iniciativas de personalidades, grupos espontâneos, associações, sindicatos, entidades e empresas marcaram o início do Fome Zero, sacudindo o entorpecimento de uns, o ceticismo de outros e a vontade de agir de muitos. Vencer a fome transformou-se em uma bandeira que contagiou a sociedade, devolvendo-lhe a inestimável confiança na capacidade de agir para equacionar seus desafios.

Pavimentou-se ali um chão de legitimidade para o que viria depois: a construção de uma ampla arquitetura de segurança alimentar que redefiniu os perímetros da oferta e da demanda no país, antecipando um poderoso contrapeso de mercado de massa à contração mundial de 2007.

Detentores de grandes fortunas, como Warren Buffett nos EUA, a exemplo do que ocorre também na França e na Alemanha, também sacodem os ombros do senso comum nesse momento ao se disporem a ampliar a contribuição aos fundos públicos. É um sinal revelador. O voluntarismo não substituirá decisões fiscais e de desenvolvimento cobradas pela crise. Mas são os valores da solidariedade e do bem comum que guiarão a travessia nessa transição.

Equívocos e fragilidades desvelados pela crise mundial, paradoxalmente, abrem espaço à criação de um novo sistema de governança global para a segurança alimentar. Dois eixos parecem claros.

Primeiro, o multilateralismo terá que ser exercido em sua plenitude. Isso implica o forte envolvimento dos países pobres e em desenvolvimento, ao contrário do desgastado "multilateralismo de cúpula", que apenas recriava a dependência vinculada a agendas protelatórias.

Segundo, a crescente compreensão de que fragilidades institucionais anteriores devem ser superadas com a incorporação de novas forças e energias sociais. A ampla participação da sociedade civil e o engajamento da iniciativa privada constituem um sopro de renovação indispensável à reconstrução da governança mundial pela segurança alimentar.

Não se trata de uma agenda exclamatória desprovida de experiência histórica. Na verdade, foi exatamente o que se fez no Brasil no lançamento do Fome Zero, quando ficou evidente que a aglutinação de atores da sociedade civil e do setor privado tem peso não apenas na arrecadação direta de recursos, mas influencia a atração de apoio político mais amplo.

A reforma e a ampliação do Comitê de Segurança Alimentar Mundial é um grande portal desse novo ciclo, que deve incluir também a iniciativa privada.

Mas o leque não se esgota aí. O grupo-piloto de Mecanismos Financeiros Inovadores para o Desenvolvimento é outra alavanca do mesmo mutirão. Ele aglutina países, organismos internacionais e ONGs que se debruçam sobre a criação de mecanismos especificamente dirigidos ao financiamento de ações sociais.

Já vigora em algumas nações, por exemplo, uma taxa sobre passagens aéreas internacionais para financiar projetos de combate à AIDS, malária e tuberculose em regiões carentes do globo. O que se discute agora é a aplicação de uma taxa equivalente às operações financeiras internacionais, uma taxa Tobin vinculada à luta contra a fome.

Nos próximos 40 anos teremos que elevar a oferta mundial de alimentos em 70% para atender a um horizonte demográfico de 9 bilhões de habitantes. A experiência agrícola recente indica que é possível fazê-lo. Mas indica também que não será suficiente realizá-lo.

Um dado resume todos os demais: desde os anos 60 a produção agrícola mundial triplicou. A população do planeta duplicou. E o fato desconcertante é que quase um bilhão de seres humanos ainda padecem de fome.

Para afastar a insegurança alimentar das lista de vergonhas do nosso tempo é preciso ir além da aritmética produtiva. É preciso aprender com a solidariedade a erguer as pontes que faltam para superar as margens extremadas do nosso tempo.

José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe e diretor-geral eleito da Organização, cargo que assume em 1º de janeiro de 2012.