Título: Morte de Zarqawi facilita, mas a estabilidade no Iraque está longe
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Fonte: Valor Econômico, 09/06/2006, Internacional, p. A10

O assassinato nesta semana de Abu Musab al-Zarqawi, líder da al-Qaeda no Iraque, divulgado ontem, pode parecer um revés retumbante para a jihad mundial contra os EUA, não apenas no Iraque como em todo o Oriente Médio - e mais além. De origem humilde, como pequeno arruaceiro na Jordânia, esse homem, mediante o recurso a extrema violência, transformou-se num herói de jihadistas pelo mundo. Mas pode não ser bem assim.

Embora jurando fidelidade a Ossama bin Laden, Zarqawi tinha, na realidade, começado a tornar-se seu rival. Enquanto Bin Laden continua escondido, provavelmente em algum lugar no Paquistão, repousando sobre os louros de seus feitos no Afeganistão e no 11 de setembro, Zarqawi comandava pessoalmente a jihad iraquiana.

Recentemente, tinha começado a dirigir ataques em locais mais distantes. Foi ele quem planejou o triplo ataque a bombas em Amã, capital da Jordânia, em novembro passado, no qual morreram quase 60 pessoas. Mais recentemente, Israel afirmou ter detectado sua assinatura em ataques terroristas em suas fronteiras. No próprio Iraque, ele foi responsável por milhares de mortes.

Apesar de tudo isso, o que o primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, denominou a "extinção" de Zarqawi não debelará a insurgência no país. Esse tipo de rebelião beneficia-se de ter líderes carismáticos, e Zarqawi era como um emir divino para seus seguidores sanguinários.

Mas a luta pode florescer sem eles. Basta lembrar, por exemplo, das falsas esperanças levantadas no fim de 2003, quando Saddam Hussein foi finalmente capturado por soldados americanos no buraco onde se escondia, no interior do país. Muitos acreditaram que essa humilhação mostraria aos iraquianos que a velha ordem fora liquidada e que eles agora tinham de abrir caminho para o novo. Isso não aconteceu. A partir de 2003, a insurgência tornou-se mais violenta, mais disseminada e mais complexa. O mais provável é que, mesmo sem Zarqa-wi, a violência persista até que a raiva que a alimenta seja erradicada.

Quais são as causas desse ódio? Infelizmente, são muitas. O que Zarqawi representava era o ponto extremo, jihadista, desse espectro de ódio. Em sua visão de mundo, e na da al-Qaeda, uma guerra mundial está sendo travada entre o Islã e os infiéis - estes liderados pelos EUA, mas englobando também diversos regimes muçulmanos que se recusam a trilhar o caminho virtuoso e, por essa razão, são vistos como regimes fantoches e apóstatas.

Essa bandeira jihadista atraiu para o Iraque voluntários de todos os cantos do mundo muçulmano, exatamente como no caso da jihad anti-soviética no Afeganistão, nos anos 80. É evidente que os fanáticos que assumem tais crenças não serão desviados de uma causa sagrada devido ao martírio de um único líder. Suas operações poderão ser perturbadas, mas sua luta continuará.

A variante jihadista é, além do mais, apenas parte (e quase certamente a parte menor) do vírus de violência que tomou conta do Iraque desde a invasão liderada pelos americanos. Embora tenha servido aos propósitos americanos exagerar o papel de estrangeiros em centenas de ataques suicidas a bomba, a verdade é que a maioria dos insurgentes são do próprio Iraque. Alguns podem abraçar parte das idéias da al-Qaeda, mas a maioria pegou em armas por outras razões, que vão de simples indignação nacionalista árabe diante do espetáculo da ocupação estrangeira por infiéis a um profundo temor, especialmente entre a antes dominante minoria árabe sunita, quanto ao que o futuro lhes reserva.

Para muitos desses árabes sunitas, a outorga de democracia não é a benção que o presidente George W. Bush alega. O governo da maioria, como demonstrou a recente eleição, parece a eles uma fórmula terrível, exclusivamente voltada para a perda de antigos privilégios e para a transferência de poder de seu próprio grupo para a maioria xiita iraquiana. De nada ajuda o fato de que um número crescente de sunitas engoliu a mensagem da al-Qaeda, segundo a qual os xiitas são apóstatas e o Iraque estaria sendo traído em benefício do Irã, seu vizinho xiita não árabe e tradicional inimigo.

A violência, além disso, costuma se realimentar: desde a destruição de um santuário xiita, em fevereiro, provavelmente obra dos homens de Zarqawi, os xiitas iraquianos abandonaram sua anterior contenção e começaram a reagir. Matanças tendo como alvo mútuo os dois campos étnicos tornaram-se comuns, dando um novo impulso a um ciclo de violência que não será interrompido pela eliminação de Zarqawi.

Existe, porém, uma excelente maneira pela qual o êxito desta semana poderá levar o Iraque a um rumo mais favorável. A eliminação de Zarqawi pode ser usada para dissipar a impressão de impotência militar e política que vem persistentemente atormentando o governo eleito do Iraque.

Esse processo já havia começado nas últimas semanas, depois da nomeação de Maliki para o cargo de primeiro-ministro. Ele vem agindo mais decisivamente do que seu antecessor, desobstruindo os trabalhos no Parlamento e formando uma coalizão que inclui partidos sunitas.

Numa visita ao sul rebelde, ele repreendeu os líderes de milícias xiitas por desafiarem a autoridade central. Ao denunciar enfaticamente abusos cometidos pelos americanos no Iraque - como o suposto massacre de civis em Haditha, que está sendo investigado - e ao prometer uma antecipação da passagem do poder na maioria das províncias ao controle militar iraquiano, ele tornou mais difícil, para os insurgentes, o caracterizarem como títere das forças de ocupação.

Tão logo Zarqawi foi morto, Maliki preencheu os anteriormente vagos cargos de ministro do Interior e de ministro da Defesa, responsáveis pela segurança. A afirmação de que forças de segurança do Iraque estiveram envolvidas na caçada a Zarqawi aumentará a credibilidade do governo. A maioria dos cidadãos comuns do Iraque anseia principal-mente por mais que lei e ordem.

Americanos e iraquianos anseiam por uma ação decisiva que ponha fim ao sofrimento no Iraque. É uma esperança vã. Tanto a eliminação de Zarqawi como algum progresso importante no front político não deterão a insurgência e os assassinatos fratricidas. O doloroso processo já em andamento - acumulação de consenso em torno do novo governo, ampliação do poder do Estado, treinamento de policiais leais e de soldados confiáveis - é o único caminho a trilhar.

O Iraque não tem experiência de democracia e tem longa vivência de violência política. O redirecionamento do país levará anos e custará muito mais vidas.

Os americanos, em especial, podem tender à impaciência. Mas impaciência na guerra contra o extremismo islâmico seria uma insensatez. Devido, em parte, à impaciência e ao descaso do governo Bush, os jihadistas estão recuperando terreno tanto no Afeganistão como na Somália . É bom que um assassino tão brutal quanto Zarqawi tenha sido morto. Mas não é, ainda, a vitória, seja no Iraque ou no combate mais amplo contra o terrorismo.