Título: Protocolo tornará o mundo mais limpo
Autor: Silvia Czapski
Fonte: Valor Econômico, 02/12/2004, Especial, p. F-6

Trabalhando há mais de 20 anos com emissões veiculares, Renato Linke, gerente de engenharia automotiva e certificação da Cetesb (agência ambiental paulista), confessa seu entusiasmo pelo álcool. "O Brasil foi pioneiro no desenvolvimento do álcool combustível nos anos 1970", diz ele, recordando uma época em que não havia preocupação com emissões ou aparelhos anti-poluição nos veículos. Bastou medir para notar que o novo combustível emitia menos monóxido de carbono (CO), hidrocarbonetos (HC) e óxidos de nitrogênio (Nox) que a gasolina. Eram os poluentes vilões da década de 1980, pelos prejuízos à saúde. Em 1988, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) criou o Proconve, programa de controle de poluição veicular que impôs a modernização gradativa dos motores. Hoje, diz Linke, graças a equipamentos como catalisadores, não se diferencia álcool da gasolina ao medir esses gases na saída dos escapamentos, já que os resultados se equivalem. Mas o álcool continua em vantagem, quando se fala em dióxido de carbono (CO2), gás que se tornou vilão do aquecimento global, nos anos 1990. Reduzir sua emissão é a meta mundial do Protocolo de Kyoto, que entra em vigor em 16 de fevereiro, 90 dias após a ratificação russa. A queima de um litro de gasolina pura, contabiliza Linke, forma 2.382 gramas de CO2, contra 1.520 gramas por litro de álcool hidratado. Quanto a emissões por quilômetro rodado, a média brasileira para carros a gasolina é de 194 gramas de CO2 por quilômetro. Nos carros a álcool, ela cai para 183 gr/km. Linke também acentua as vantagens, na análise do ciclo de carbono. Seriam necessários milhões de anos para que o CO2 liberado pela queima dos deriva-dos do petróleo voltasse à forma de "ouro negro", por processos naturais. No caso do álcool, bastam 18 meses: é o tempo entre o plantio e crescimento da cana-de-açúcar (fixação do carbono), e o uso do álcool combustível (lança CO2 no ar). "É por isso que biocombustíveis são renováveis, e combustível fóssil, não", ensina o gerente. Como signatário da Convenção do Clima, em 1992, o Brasil elabora seu inventário nacional de emissões de gases do efeito estufa. A Cetesb, explica Linke, participa. "Trabalhamos com duas colunas: a dos combustíveis fósseis, que geram efeito estufa, e a dos renováveis, como álcool, cuja emissão é absorvida." A presença de 22% de álcool na gasolina é evidenciada: "Nós separamos a porcentagem do álcool da do petróleo." Os números seriam ainda mais positivos, garante o gerente, se contempladas as conclusões de algumas pesquisas. "Os números variam, mas a conclusão da avaliação do ciclo de vida do produto é que ele retira CO2 da atmosfera." Somando o álcool anidro (misturado à gasolina), ao hidratado dos carros a álcool, e comparando com emissões dos derivados do petróleo, o Brasil deixou de lançar 7 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e) na atmosfera, no período da safra 2002-2003, confirma Manoel Regis Leal, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade de Campinas (Nipe/ Unicamp). São dados de um balanço energético lançado no início do ano, do qual ele é co-autor. Desenvolvido pelo Centro de Tecnologia da Copersucar, por enco-menda da secretaria estadual de Meio Ambiente e da União da Agro-Indústria Canavieira de São Paulo (Unica), o estudo abrange do plantio da cana às emissões do álcool e serve de trunfo para aplicação do Protocolo de Kyoto. Criado para reduzir a ameaça do aquecimento global, esse acordo internacional estabeleceu que, até 2012, os 30 países industrializados listados no chamado Anexo 1 reduzam os gases do efeito estufa (como CO2) em 5,2%, tendo como base 1990. Para facilitar a implementação, há os "mecanismos de flexibiliza-ção". Um deles é o MDL (Mecanismos de Desenvolvimento Limpo), pelo qual países industrializados, via suas empresas, financiam projetos que reduzem emissões em nações fora deste anexo, como o Brasil. Contabilizadas como créditos de carbono, negociáveis no mercado, essas emissões impulsionaram o mercado, antes mesmo do Protocolo ser ratificado. "Identificamos 49 iniciativas, como por exemplo o Fundo Protótipo de Carbono do Banco Mundial", diz o especialista Délcio Rodrigues, do Grupo de Trabalho de Mudanças Climáticas, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (Fboms). Dado do Banco Mundial: apenas em 2002, 70 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e) já foram negociadas, por valores na faixa de US$ 3 a US$ 5 por tCO2e. Substituir derivados de petróleo pelo álcool é uma forma rápida de reduzir emissões, que se enquadraria nos MDL, avalia Leal. Só que o protocolo aceita apenas projetos pós-1999. O Proálcool, portanto, ficou fora. Mas países que não usavam biocombustíveis, como a Índia, apostam na alternativa. Esse é um dos fatores que explicam os dados da Unica, de que as exportações do álcool, de 170 milhões de litros em 2003, chegarão a 900 milhões de litros em 2004. No Brasil, o setor sucroalcoleiro já usa MDLs no apoio a projetos de co-geração de energia com bagaço de cana. O primeiro foi da Cia. Açucareira Vale do Rosário, em Morro Agudo (SP). Desenvolvido pela Econergy do Brasil e validado pela alemã TUV Südduetschland, esse projeto promete reduzir as emissões em 645 mil toneladas de CO2 equivalente, de 2001 a 2007. Um mérito da proposta, diz Marcelo Junqueira, vice-presidente da Ecoenergy, foi criar metodologia para a área. A usina, diz ele, recebe US$ 5 por tCO2e. Depois da Vale do Rosário, mais de 15 empresas do setor tornaram-se clientes, diz Junqueira. O mercado está aquecido: assim que a Rússia anunciou sua adesão ao Protocolo, a Ecoenergy esgotou os créditos de carbonos disponíveis, vendidos por tCO2e por até 5,5 euros. "A valorização vai continuar." Mas Junqueira faz um aviso: os MDLs devem ser vistos como uma vertente adicional de recursos: "Não deveria se aceitar que, para aprovar um financiamento de desenvolvimento sustentável, se exijam mais papéis de que um projeto poluidor, como a compra de gerador a diesel na Amazônia", reclama. No caso do aproveitamento de bagaço para co-geração de energia, diz ele, a expansão foi possibilitada pela venda de energia à rede pública. Mas, com o MWh a R$ 100, o investimento em eficiência energética pode não compensar. É aí que R$ 10 a R$ 15 adicionais dos créditos de carbono fazem a diferença. Só que um projeto de MDL custa pelo menos US$ 30 mil, gastos entre consultoria e auditorias. Mesmo com a tCO2e a US$ 6, deve-se arrecadar 5 mil créditos, só para cobrir o custo do projeto. Acompanhando o Protocolo de Kyoto desde as primeiras discussões, José Domingos Gonzalez Miguez, secretário-executivo da Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas, adianta: já existem estudos para que um avanço tecnológico, no setor de transportes, os motores flex fuel, possam ser beneficiados pelos MDL. O enquadramento não é simples, mencionando alguns passos da aprovação. O projeto de redução das emissões deve ser demonstrável, deve-se indicar como será o monitoramento periódico e a metodologia tem de ser validada por uma entidade operacional independente, pelo governo federal do país onde se desenvolve o projeto e por um executive board da ONU. Na véspera de embarcar para Buenos Aires, onde participa da última reunião ministerial antes da entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, Cop-10, ele comenta: "Até agora, o mercado dos MDL desenvolveu-se com base nas indicações da Convenção de Mudanças Climáticas. Agora a perspectiva muda, e a COP-10 ganha importância." Gylvan Meira, brasileiro que presidiu o grupo internacional que desenhou os MDL, já se dedica a um futuro mais distante. "O Protocolo de Kyoto dá regras até o ano de 2012. Temos de olhar adiante para manter um mecanismo equivalente depois disso." A Inglaterra, diz ele, já estabeleceu a meta de reduzir suas emissões em 60% até 2050. A Alemanha segue essa tendência. Os Estados Unidos, que não aderiram ao Protocolo, permanecem uma incógnita.