Título: Dólar perde seu prestígio no mundo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/12/2004, Finanças, p. C8
O dólar é a principal moeda internacional desde que a maioria das pessoas consegue se lembrar. Mas seu papel dominante não está mais garantido. Se os Estados Unidos continuarem gastando e tomando emprestado no ritmo atual, o dólar em algum momento vai perder seu poderoso status nas finanças internacionais. E isso seria doloroso: o privilégio de poder imprimir a moeda de reserva do mundo, que agora está ameaçado, permite aos EUA tomar dinheiro barato, e assim gastar muito mais do que ganha, em condições muito melhores que as disponíveis para outros países. Imagine que você pudesse preencher cheques que fossem aceitos como pagamento, mas que nunca fosse descontados. Se você pudesse fazer isso, tomaria cuidado para não perder a oportunidade. Os EUA não estão tomando esse cuidado, e poderão se arrepender. O dólar já não é o que costumava ser. Nos últimos três anos desvalorizou-se 35% em relação ao euro e 24% frente ao iene. Mas, a queda mais recente é sintoma de um mal maior: o sistema financeiro global está sob forte pressão. Os EUA têm hábitos inadequados, para dizer o mínimo, para um guardião da principal moeda de reserva do mundo: o governo toma muito dinheiro emprestado, os consumidores gastam furiosamente e o déficit em conta corrente do país é tão grande que, algum tempo atrás, essa situação teria quebrado outro país. Isso torna a desvalorização do dólar inevitável, no mínimo porque se torna uma opção aparentemente atrativa para os líderes de uma América muito endividada. As autoridades de política monetária agora parecem estar depreciando o dólar. Mesmo assim, este é um jogo perigoso. Por que alguém iria querer investir em uma moeda que quase que certamente vai se desvalorizar? Uma segunda característica perturbadora do sistema financeiro mundial é que ele se tornou uma impressora de dinheiro gigante na medida em que a política do dinheiro fácil dos EUA se espalhou para além de suas fronteiras. A liquidez mundial total está crescendo mais rapidamente em termos reais do que nunca. Economias emergentes que tentam atrelar suas moedas ao dólar, especialmente na Ásia, vêm sendo forçadas a ampliar a política monetária super-frouxa do Federal Reserve (Fed): quando os bancos centrais compram dólares para segurarem suas moedas, eles imprimem dinheiro local para fazer isso. Essa torrente de liquidez global não tem alimentado a inflação. Ao invés disso, tem fluído para os preços das ações e imóveis, inflando uma série de bolhas de preços. O déficit em conta corrente dos EUA está no coração dessas preocupações globais. O último relatório "Perspectivas Econômicas" da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), prevê que o déficit vai aumentar para US$ 825 bilhões até 2006 (6,4% do PIB americano), assumindo taxas cambiais inalteradas. Os otimistas argumentam que os estrangeiros continuarão financiando o déficit porque os ativos americanos oferecem retornos maiores e representam um porto seguro em relação aos riscos. Na verdade, investidores privados já se afastaram dos ativos em dólar: os retornos sobre os investimentos nos EUA recentemente passaram a ser menores do que no Europa ou no Japão. E será que uma moeda que vem desvalorizando em relação às duas outras grandes moedas mundiais há 30 anos pode ser considerada "segura"? Quão nocivas serão as conseqüências econômicas? Será que isso vai realmente minar o status do dólar de moeda de reserva? Os períodos de queda do dólar sempre foram infelizes para a economia mundial. O rompimento do acordo de Bretton Woods, que levou ao enfraquecimento do dólar no começo dos anos 70, foi doloroso para todos, contribuindo para a inflação e a recessão. No fim dos anos 80, a queda do dólar teve poucos efeitos maléficos sobre a economia dos EUA, mas teve um grande papel na formação de uma bolha no Japão, ao forçar as autoridades japonesas a cortarem as taxas de juros. Desta vez, é um sinal ruim que todos estejam tentando apontar o dedo da culpa para outro. Os EUA afirmam que seu déficit externo se deve principalmente ao fraco crescimento da Europa e do Japão, e ao fato de que a China atrela sua moeda ao dólar a uma cotação baixa. A Europa, alarmada com a "brutal" alta do euro, diz que o alto nível de empréstimos tomados pelo governo americano e as baixas taxas de poupança domésticas são os verdadeiros culpados. Há algo de verdadeiro em todas essas alegações. Não obstante, muitas autoridades de política monetária dos EUA dizem que é melhor depender inteiramente de uma queda do dólar para resolver, de certa forma, todos os seus problemas. É concebível que isso poderia acontecer - mas um remédio unilateral desses provavelmente seria muito mais doloroso do que eles imaginam. O desafio dos EUA não é apenas reduzir seu déficit em conta corrente a um nível que os estrangeiros fiquem felizes em financiar comprando mais ativos em dólares, mas também convencer os credores externos existentes a manterem seus vastos estoques de ativos em dólar, estimados em quase US$ 11 trilhões. Uma queda no dólar suficiente para acabar com o déficit em conta corrente pode destruir seu status de porto seguro. Se o dólar cair outros 30%, como alguns prevêem, isso resultaria no maior default da história sobre um serviço de dívida: não um default convencional sobre o serviço de uma dívida, mas um default furtivo, varrendo trilhões do valor dos ativos em dólares de investidores estrangeiros. A perda do status de moeda de reserva pelo dólar levaria os credores dos EUA a começarem a descontar aqueles cheques - e que terrível volume de cheques há para serem descontados. Na medida em que esse processo fosse ganhando força, o dólar poderia despencar mais e mais. Os rendimentos dos bônus americanos (taxas de juros de longo prazo) iriam disparar, muito provavelmente provocando uma profunda recessão. Os americanos que são a favor do dólar mais fraco deveriam ser cuidadosos com o que desejam. Reduzir o déficit orçamentário parece ser um preço mais barato.