Título: Uma nova onda protecionista?
Autor: Luiz Gonzaga Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 27/06/2006, Opinião, p. A11

Corre solto o debate sobre o déficit em conta corrente dos Estados Unidos e os superávits crônicos e crescentes, sustentados por um contingente cada vez maior de países, sobretudo os chamados periféricos. A opinião majoritária reclama uma desvalorização ainda mais pronunciada do dólar como remédio eficaz para os atuais desequilíbrios dos balanços de pagamentos. Outros, na contramão, entendem que a aposta na desvalorização da moeda americana, na proporção exigida pelos partidários do "ajustamento", pode se transformar num vagalhão de problemas financeiros, cambiais e monetários. O maior receio dos adversários da desvalorização se concentra na possibilidade de uma elevação da inflação americana e no risco de uma fuga dos ativos denominados em dólar, com efeitos perversos sobre as taxas de juros.

O economista Stephen Roach do Morgan Stanley, em comentário recente, faz soar o alarme do protecionismo: estão em curso, no Congresso dos Estados Unidos, mais de 20 projetos que impõem restrições às importações da China, país responsável por 25% do formidável déficit comercial americano em 2005.

Roach atribui a nova "onda" de protecionismo à derrogação da teoria das vantagens comparativas "pela ação dissolvente das novas tecnologias - sobretudo da internet - que aceleram a concorrência entre os trabalhadores do mundo desenvolvido" e os empregos de baixos salários criados na periferia em desenvolvimento.

O mais chocante, diz Roach, é que as tecnologias da informação levaram a insegurança aos serviços, setor em que a proteção diante da concorrência estrangeira parecia garantida.

No livro "Trade, Development and Foreign Debt", o economista americano Michael Hudson faz uma avaliação histórica e crítica das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os mercantilistas até os dias de hoje, com parada obrigatória em Adam Smith e David Ricardo. Ele divide as teorias em dois grandes grupos: 1) aquelas que definem o sistema econômico internacional a partir de relações hierárquicas entre os Estados nacionais, suas moedas, seus sistemas financeiros e suas empresas; e, 2) as que advogam a existência de um espaço homogêneo e "competitivo", um campo aberto para o desenvolvimento dos negócios e das trocas.

-------------------------------------------------------------------------------- Solução via declínio do valor do dólar não é compatível com a formidável concentração da capacidade de financiamento e de gasto nos Estados Unidos --------------------------------------------------------------------------------

Para Hudson, as palavras "protecionista" e "livre-cambista" são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas - de um lado e de outro - a respeito desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo conviveram como cães e gatos. Brigaram o tempo todo mas são inseparáveis.

No final do século XIX, no apogeu da ordem liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos. Já no início do século XX, a Inglaterra "liberal" havia perdido a liderança industrial para a Alemanha e para a sua ex-colônia.

Depois da II Guerra Mundial, os americanos abriram o seu mercado para as exportações da Europa e do Japão em reconstrução, ao mesmo tempo em que suas empresas migravam em massa para as regiões de crescimento mais rápido.

Hoje, mais do que nunca a evolução do comércio mundial é produto das estratégias de investimento da grande empresa transnacional. Ao longo das duas últimas décadas, a metástase do sistema empresarial da tríade desenvolvida - Estados Unidos, Japão e Eurolândia - determinaram uma impressionante ampliação dos fluxos de comércio. As estratégias de deslocalização e investimento direto ganharam força na década dos 90 e desde então beneficiam a China, a Ásia emergente e os países do Leste Europeu, com algumas sobras para a América Latina.

Os asiáticos sempre adotaram políticas mercantilistas de comércio exterior com o objetivo de sustentar estratégias de crescimento acelerado. A busca de saldos comerciais expressivos, com rápido crescimento das exportações e das reservas, tem o propósito de permitir taxas de acumulação de capital elevadas, acompanhadas de altos índices de endividamento das empresas e de formação de poupança privada. A acumulação de reservas elevadas garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio, com juros baixos.

O crescimento global ficou, portanto, polarizado: de um lado, o emissor da moeda reserva e sua enorme liberdade de expandir o crédito, o gasto, o déficit em conta corrente e o endividamento externo; de outro, os países comprometidos com a atração do "novo" investimento estrangeiro e estratégias de crescimento acelerado, apoiadas em altas taxas de investimento e de poupança doméstica, industrialização rápida e permanente graduação tecnológica das exportações.

Trata-se de um processo de redistribuição espacial da indústria manufatureira à escala global, movida pelo acirramento da concorrência entre as grandes empresas e, simultaneamente, pelas tendências daí decorrentes de intensificação das fusões e aquisições entre as corporações "transnacionalizadas" . Neste ambiente, é arriscado apostar num ajustamento dos balanços de pagamentos promovido por um realinhamento das principais moedas. O que se pretende é a revalorização das moedas dos países superavitários e, portanto, um declínio do valor do dólar.

O problema desta solução é que ela não parece compatível com a profunda assimetria entre os processos de redistribuição espacial da produção para a periferia emergente, a reorientação das correntes de comércio e a formidável concentração da capacidade de financiamento e de gasto nos Estados Unidos.