Título: Keynes morreu, viva Keynes!
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2006, Brasil, p. A2

Esta semana testemunhei (entre empadinhas e chopes) uma interessante conversa de dois economistas bem preparados e de certa importância na administração federal e que cultivam um elegante "viés" de esquerda.

A discussão concentrava-se sobre a necessidade que terá o presidente eleito (qualquer que seja ele) de prosseguir na desmontagem das armadilhas que dificultam o crescimento, construídas na octaetéride fernandista. Elas foram deixadas como resíduos da má execução e da falta de ajuste fiscal, que acompanharam o brilhante Plano Real articulado em 1994:

A armadilha externa: o Brasil "quebrou" duas vezes (em 1998 e 2002), fomos socorridos pelo FMI nos dois momentos, mas terminamos 2002 com uma relação dívida externa/exportação da ordem de 3,5 (quando o normal é em torno de 1,5) e uma reserva líquida de US$ 16,3 bilhões, absolutamente incapaz de sustentar uma política de câmbio flexível sem violenta volatilidade. A dependência externa era, portanto, absoluta. Fatores favoráveis, alguns iniciados no governo anterior, e outros ajudados pela enorme expansão mundial a partir de 2002, desmontaram a armadilha externa. Hoje, a relação dívida externa/exportação é da ordem de 1,5 e a reserva líquida (depois de termos pago o FMI e Clube de Paris) é superior a US$ 60 bilhões.

Resta desmontar a armadilha interna: no decorrer dos oito anos de aplicação do Plano Real, o governo elevou a carga tributária bruta para 36% do PIB (contra 26% em 1994) e aumentou a relação dívida líquida/PIB para 56% do PIB (contra 30% em 1994), com quatro efeitos perversos. Primeiro, transferiu renda do setor privado mais eficiente para o setor público menos eficiente, reduzindo a produtividade média da economia; segundo, reduziu o nível de poupança do setor privado, cortando o investimento e o crescimento futuro; terceiro, apropriou-se de boa parte do crédito antes destinado ao setor privado e, quarto, pressionou, assim, a taxa de juro real da economia, prejudicando ainda mais seu crescimento.

-------------------------------------------------------------------------------- É preciso desmontar a armadilha interna --------------------------------------------------------------------------------

Como o financiamento da dívida foi mal feito, sua herança foi uma curva de juros teratológica: a taxa de juro real de curto prazo é muito maior do que as de longo prazo. Com uma dívida de pouco mais de 50% do PIB, o governo ainda paga, hoje, como juros, nada menos do que 7% a 8% do PIB, o que implica uma cavalar transferência de renda de consumidores e empreendedores para os "rentistas" (nacionais e estrangeiros) que financiam o Estado obeso, perdulário e generoso que vimos construindo desde a Constituição de 1988.

O fato singular é que, mesmo reconhecendo que esse Estado não cabe mais no PIB, os dois economistas a que me referi acreditam que "qualquer" corte das despesas estatais, não importa a sua "qualidade", reduziria ainda mais a taxa de crescimento do PIB.

Continuam com a equivocada interpretação do Keynes "sem preços", que chegou ao Brasil em meados dos anos 50, liofilizado e matematizado, que insiste em ignorar todas as experiências históricas bem-sucedidas e perfeitamente explicáveis com o "keynesianismo com preços". A primeira delas foi o famoso orçamento Thatcher-Haley, de 1981. Para cumprir a estratégia financeira de médio prazo, formulada para reduzir a tragédia econômica em que estava metida a Inglaterra em 1980, estabeleceu-se: 1) um limite para a relação déficit nominal/PIB; e 2) um limite para a oferta de moeda. O orçamento de 1981 propôs um programa que, para realizar as metas, aumentava os impostos, mas cortava o gasto total na ordem de 2% do PIB. Um terceiro item do programa era uma ampla reforma para aumentar a concorrência.

O fato notável é que o "The Times", de Londres, no dia 7 de abril de 1981 (há 25 anos, portanto) publicou um "manifesto" assinado por 364 economistas (por iniciativa de Cambridge, a "Alma Mater" de Keynes) onde se afirmava: 1) que a política Thatcher-Haley iria "aprofundar a recessão vigente"; 2) que "não existia base na teoria econômica para suportar a crença do governo" que deflacionando a demanda ele controlaria permanentemente a inflação e induziria a recuperação do produto e do emprego; e 3) que "existiam políticas alternativas" à proposta.

Os 364 economistas pagaram o vexame de errar coletivamente, por ignorar o Keynes sofisticado que separava o "circuito financeiro" (ativos reais e financeiros, crédito, dezenas de vezes maior) do "circuito industrial", para entender os efeitos diferenciados, sobre eles, da taxa de juros, da taxa de câmbio, dos movimentos de capitais e das "expectativas", e por desprezar os efeitos sobre a oferta das medidas microeconômicas incluídas no programa Thatcher para estimular a competição. A propósito, até hoje se espera a sugestão das "políticas alternativas" a que se referiram antes de enfiar a "viola no saco", depois do sucesso do programa.

O orçamento de 1981 matou definitivamente o "keynesianismo liofilizado e matematizado" da academia, que ignorava o essencial de Keynes. Infelizmente, ele parece que ainda habita, disfarçado de lázaro ressurrecto, o "coração" de alguns economistas da "esquerda" (?) do PSDB e do PT...