Título: Contração fiscal reduz realmente os juros?
Autor: Vinicius,Marcos
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2011, Opinião, p. A12

Os problemas decorrentes de uma elevada taxa básica de juros na economia brasileira há muito tempo estão em pauta. São conhecidos os efeitos da alta da Selic em termos de desestímulo ao investimento e à produção, pressões na taxa de câmbio, dentre outras implicações. Diante do impasse com o alto patamar da Selic, estabeleceu-se recentemente um amplo debate acerca dos possíveis métodos para obter sua redução. Neste debate, apesar das inúmeras divergências entre as estratégias para a redução da Selic, formou-se um denominador comum: de que um "ajuste" fiscal levaria à queda da taxa de juros.Não causa espanto que autores de formação "ortodoxa" concordem que um "ajuste" fiscal reduza os juros. Ao perpetrar sua velha cantilena, reprisa-se a ideia de que uma elevação no rigor fiscal elevaria a oferta de poupança e contribuiria para a queda dos juros, já que, para tais autores, a taxa de juros resulta do equilíbrio da oferta e demanda por recursos reais.

A fragilidade desse antigo, mas sempre reproduzido, argumento se percebe com a contribuição de John Maynard Keynes, na qual a taxa de juros reflete o grau de disposição dos detentores de riqueza em abrir mão da liquidez, ou seja, da moeda. E como se define a "preferência pela liquidez"? A resposta não está necessariamente relacionada a fatores reais, mas decorre das convenções formadas no mercado e é racional que se exacerbe a busca por liquidez (segurança) em momentos de alta incerteza. Assim, a taxa de juros não é o preço que equilibra a disponibilidade de poupança e demanda para investimento. Os juros são o preço que os detentores de riqueza cobram para abrir mão da liquidez e assumir o risco de manter seu patrimônio em posições menos líquidas.

Sendo assim, o que surpreende é que autores reconhecidamente "heterodoxos" tenham defendido que uma política fiscal rigorosa contribuiria para reduzir a Selic, sem qualificar devidamente o mecanismo pelo qual ocorreria essa "transmissão" entre política fiscal e monetária.

Há um primeiro conjunto de autores "heterodoxos" que interpreta a situação fiscal brasileira como Ponzi, pois os juros sobre a dívida fariam com que essa crescesse mais rapidamente que o PIB. A posição Ponzi, definida por Minsky, é aquela em que os rendimentos esperados pelo investidor são insuficientes para cobrir os gastos com juros, configurando uma trajetória de insolvência. No Brasil, o problema a combater seria, portanto, a situação "crítica" das contas públicas nacionais, pois o gasto com juros é superior ao superávit primário, gerando déficits nominais. Ao melhorar os "fundamentos" fiscais, o mercado passaria a aceitar juros menores, pois haveria credibilidade na capacidade do governo honrar compromissos.

Primeiro, a ideia de um Estado nacional Ponzi em sua própria moeda é um contrassenso, pois o Estado detém o controle da base monetária e pode aumentar suas receitas via tributos. Nos países periféricos, cuja moeda é pouca líquida nos mercados financeiros internacionais, é possível haver insolvência na própria moeda, mas certamente esse não é o cenário atual, em que a dívida pública continua a ser entendida como um investimento seguro. Segundo, os autores teriam que explicar o motivo do mercado cobrar um prêmio de risco tão elevado para um país que possui uma relação dívida líquida/PIB cadente e bastante reduzida (menos de 40%) na comparação internacional. A evolução dessa dívida não é motivo de preocupação, pois mantendo o atual ritmo do PIB (cerca de 3% a 4% a.a.) e da dívida (cerca de 2% a.a.), o indicador da dívida líquida/PIB tende a se reduzir gradativamente. Ou seja, mantém-se a trajetória benigna do endividamento público, não sendo necessários novos "ajustes".

A questão que fica em aberto, portanto, é estabelecer "a" referência para os ditos "fundamentos" fiscais que possibilitariam uma redução dos juros. Na tentativa de desvelar os misteriosos caminhos da taxa de juros no Brasil, enreda-se nas não menos nebulosas veredas dos "fundamentos" fiscais sólidos, que encontram paralelos apenas em alquimias econômicas, como o "produto potencial" ou a "taxa de desemprego natural".

Há um segundo conjunto de autores "heterodoxos" que tem defendido tese semelhante. A importante nuance é que este conjunto de autores não entende que a pressão sobre os juros decorra de "fundamentos" fiscais. A questão seria política: a realização de um "ajuste" fiscal colocaria o mercado no corner, uma vez que o Estado não mais precisaria apelar para a emissão de dívida para cobrir seus eventuais déficits. Nesta luta de gigantes, o governo ganharia uma importante arma para pressionar o mercado a aceitar juros menores. Apesar de partir de uma concepção keynesiana da taxa de juros, tal abordagem parece não levar em consideração que o Estado é obrigado a rolar 25% de sua dívida todo ano, devido à composição curto prazista observada na mesma. Assim, no momento da rolagem da dívida velha, o poder estaria novamente nas mãos do mercado para pressionar o governo por juros mais elevados.

A última decisão do Copom, que reduziu a Selic para 12% a.a., reflete o contexto de desaceleração verificado no Brasil, aliado ao horizonte de turbulências internacionais que tende a se transmitir à economia brasileira por diversos canais, além de possível efeito baixista em commodities. Ademais, a Fazenda anunciou mais R$ 10 bilhões de superávit primário na véspera do Copom, com o objetivo de colocar o mercado no corner. Nesse quadro, o aperto fiscal pode ter sido a gota d"água para a decisão do Copom. No entanto, isso não quer dizer que a mudança de patamar dos juros dependa de uma contração fiscal. Note que além da conjuntura atual de desaceleração e crise internacional, soma-se a dívida líquida/PIB em queda, mas ainda assim o mercado tem se manifestado contrário à decisão do Copom, fazendo um terrorismo inflacionário. Portanto, acentuar a contração fiscal não terá efeito necessário no patamar de juros. Em realidade, reduzir a Selic implica necessariamente em menor despesa; em outras palavras: juros causam despesa pública. Já a causalidade contrária é duvidosa.

Marcos Vinicius Chiliatto-Leite e Guilherme Santos Mello são economistas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp (Cecon)

Os problemas decorrentes de uma elevada taxa básica de juros na economia brasileira há muito tempo estão em pauta. São conhecidos os efeitos da alta da Selic em termos de desestímulo ao investimento e à produção, pressões na taxa de câmbio, dentre outras implicações. Diante do impasse com o alto patamar da Selic, estabeleceu-se recentemente um amplo debate acerca dos possíveis métodos para obter sua redução. Neste debate, apesar das inúmeras divergências entre as estratégias para a redução da Selic, formou-se um denominador comum: de que um "ajuste" fiscal levaria à queda da taxa de juros.

Não causa espanto que autores de formação "ortodoxa" concordem que um "ajuste" fiscal reduza os juros. Ao perpetrar sua velha cantilena, reprisa-se a ideia de que uma elevação no rigor fiscal elevaria a oferta de poupança e contribuiria para a queda dos juros, já que, para tais autores, a taxa de juros resulta do equilíbrio da oferta e demanda por recursos reais.

A fragilidade desse antigo, mas sempre reproduzido, argumento se percebe com a contribuição de John Maynard Keynes, na qual a taxa de juros reflete o grau de disposição dos detentores de riqueza em abrir mão da liquidez, ou seja, da moeda. E como se define a "preferência pela liquidez"? A resposta não está necessariamente relacionada a fatores reais, mas decorre das convenções formadas no mercado e é racional que se exacerbe a busca por liquidez (segurança) em momentos de alta incerteza. Assim, a taxa de juros não é o preço que equilibra a disponibilidade de poupança e demanda para investimento. Os juros são o preço que os detentores de riqueza cobram para abrir mão da liquidez e assumir o risco de manter seu patrimônio em posições menos líquidas.

Sendo assim, o que surpreende é que autores reconhecidamente "heterodoxos" tenham defendido que uma política fiscal rigorosa contribuiria para reduzir a Selic, sem qualificar devidamente o mecanismo pelo qual ocorreria essa "transmissão" entre política fiscal e monetária.

Há um primeiro conjunto de autores "heterodoxos" que interpreta a situação fiscal brasileira como Ponzi, pois os juros sobre a dívida fariam com que essa crescesse mais rapidamente que o PIB. A posição Ponzi, definida por Minsky, é aquela em que os rendimentos esperados pelo investidor são insuficientes para cobrir os gastos com juros, configurando uma trajetória de insolvência. No Brasil, o problema a combater seria, portanto, a situação "crítica" das contas públicas nacionais, pois o gasto com juros é superior ao superávit primário, gerando déficits nominais. Ao melhorar os "fundamentos" fiscais, o mercado passaria a aceitar juros menores, pois haveria credibilidade na capacidade do governo honrar compromissos.

Primeiro, a ideia de um Estado nacional Ponzi em sua própria moeda é um contrassenso, pois o Estado detém o controle da base monetária e pode aumentar suas receitas via tributos. Nos países periféricos, cuja moeda é pouca líquida nos mercados financeiros internacionais, é possível haver insolvência na própria moeda, mas certamente esse não é o cenário atual, em que a dívida pública continua a ser entendida como um investimento seguro. Segundo, os autores teriam que explicar o motivo do mercado cobrar um prêmio de risco tão elevado para um país que possui uma relação dívida líquida/PIB cadente e bastante reduzida (menos de 40%) na comparação internacional. A evolução dessa dívida não é motivo de preocupação, pois mantendo o atual ritmo do PIB (cerca de 3% a 4% a.a.) e da dívida (cerca de 2% a.a.), o indicador da dívida líquida/PIB tende a se reduzir gradativamente. Ou seja, mantém-se a trajetória benigna do endividamento público, não sendo necessários novos "ajustes".

A questão que fica em aberto, portanto, é estabelecer "a" referência para os ditos "fundamentos" fiscais que possibilitariam uma redução dos juros. Na tentativa de desvelar os misteriosos caminhos da taxa de juros no Brasil, enreda-se nas não menos nebulosas veredas dos "fundamentos" fiscais sólidos, que encontram paralelos apenas em alquimias econômicas, como o "produto potencial" ou a "taxa de desemprego natural".

Há um segundo conjunto de autores "heterodoxos" que tem defendido tese semelhante. A importante nuance é que este conjunto de autores não entende que a pressão sobre os juros decorra de "fundamentos" fiscais. A questão seria política: a realização de um "ajuste" fiscal colocaria o mercado no corner, uma vez que o Estado não mais precisaria apelar para a emissão de dívida para cobrir seus eventuais déficits. Nesta luta de gigantes, o governo ganharia uma importante arma para pressionar o mercado a aceitar juros menores. Apesar de partir de uma concepção keynesiana da taxa de juros, tal abordagem parece não levar em consideração que o Estado é obrigado a rolar 25% de sua dívida todo ano, devido à composição curto prazista observada na mesma. Assim, no momento da rolagem da dívida velha, o poder estaria novamente nas mãos do mercado para pressionar o governo por juros mais elevados.

A última decisão do Copom, que reduziu a Selic para 12% a.a., reflete o contexto de desaceleração verificado no Brasil, aliado ao horizonte de turbulências internacionais que tende a se transmitir à economia brasileira por diversos canais, além de possível efeito baixista em commodities. Ademais, a Fazenda anunciou mais R$ 10 bilhões de superávit primário na véspera do Copom, com o objetivo de colocar o mercado no corner. Nesse quadro, o aperto fiscal pode ter sido a gota d"água para a decisão do Copom. No entanto, isso não quer dizer que a mudança de patamar dos juros dependa de uma contração fiscal. Note que além da conjuntura atual de desaceleração e crise internacional, soma-se a dívida líquida/PIB em queda, mas ainda assim o mercado tem se manifestado contrário à decisão do Copom, fazendo um terrorismo inflacionário. Portanto, acentuar a contração fiscal não terá efeito necessário no patamar de juros. Em realidade, reduzir a Selic implica necessariamente em menor despesa; em outras palavras: juros causam despesa pública. Já a causalidade contrária é duvidosa.

Marcos Vinicius Chiliatto-Leite e Guilherme Santos Mello são economistas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp (Cecon)