Título: Brasil produz moscas para combater praga
Autor: Raquel Balarin
Fonte: Valor Econômico, 21/06/2006, Especial, p. A12

A pergunta é inevitável: fabrica de quê? Isso mesmo, de moscas. O Brasil acaba de começar a produzir moscas do mediterrâneo e deverá, até o fim do primeiro semestre de 2007, iniciar exportações do produto para a Espanha e o Marrocos. O objetivo da estranha fábrica é o controle da praga da mosca-da-fruta, que vem causando grandes prejuízos nas regiões brasileiras produtoras de frutas, em especial o Vale do São Francisco, responsável por quase 50% das exportações brasileiras. Estima-se que esse tipo de mosca cause um prejuízo anual ao país de US$ 60 milhões. Em condições normais, o inseto deposita seus ovos na fruta. O ovo se transforma em larva (como o conhecido bicho de goiaba) e se alimenta da polpa. Com isso, a venda da fruta para consumo de mesa torna-se inviável.

O sistema da biofábrica, batizada de Moscamed Brasil, é engenhoso. Com o auxílio da irradiação por cobalto, insetos machos tornam-se estéreis e, em seguida, são liberados no ambiente, para copular com fêmeas selvagens. As fêmeas ficam 15 dias sem copular com outro macho e acabam morrendo sem colocar ovos. Há uma redução natural da população de insetos, mantendo a praga sob controle. A mosca-da-fruta (Ceratitis capitata) afeta culturas de manga, uva, goiaba, maracujá, caqui, carambola, kiwi, papaya, entre outros.

Os resultados dos primeiros projetos-pilotos da Moscamed são animadores. No perímetro irrigado de Curaçá, na Bahia, o índice de moscas por armadilha ao dia caiu de 1,6 em maio do ano passado, quando começaram a ser liberados insetos importados da Argentina, para 0,149 três meses depois. Em Livramento de Nossa Senhora, a população de moscas também caiu bastante. E, agora, a biofábrica inicia um projeto piloto no projeto de irrigação senador Nilo Coelho, o maior do Vale do São Francisco.

Enquanto o uso de inseticidas protege uma área específica das plantações, o sistema do macho estéril permite o controle total da população. "Essa é a grande vantagem da técnica", diz Aldo Malavasi, diretor-presidente da Moscamed. Ele ressalta, porém, que a técnica não elimina 100% da necessidade de inseticidas. Em alguns casos, é preciso combinar as duas técnicas. "Além disso, a liberação de moscas estéreis tem de ser contínua, para manter a praga sob controle", explica o presidente da biofábrica.

Malavasi é o grande idealizador da fábrica de moscas. Há mais de dez anos faz parte de um grupo que aconselha o governo da Califórnia no combate à mosca da fruta ("haveria um prejuízo de US$ 1,2 bilhão se a mosca do mediterrâneo entrasse na Califórnia"). Já participou de projetos na África, em missões da Organização das Nações Unidas (ONU), e trabalhou no Suriname no programa de erradicação da mosca da carambola.

Sua vida acadêmica na Universidade de São Paulo foi dedicada ao inseto. Ao se aposentar, no ano passado, poderia ter escolhido vários lugares do mundo para trabalhar ou poderia simplesmente viver de consultoria e cuidar das plantas em casa. Em vez disso, desistiu de São Paulo e se mudou com a mulher e a filha do novo matrimônio para o Nordeste. O objetivo: comandar a implantação da fábrica de moscas.

A biofábrica é um daqueles poucos exemplos de empreendimento patrocinado pelo poder público brasileiro que saiu do papel. Demorou, é verdade, mas saiu. De janeiro de 2004 a dezembro do ano passado, consumiu investimentos de R$ 17 milhões - incluindo os R$ 7 milhões da cessão do terreno feita pelo governo da Bahia. Recebeu recursos de três ministérios (da Agricultura, da Ciência e Tecnologia e da Integração Nacional), além de R$ 1,1 milhão de doações da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Foi a agência que doou a fonte de cobalto, usada para irradiar as pupas, para tornar os machos estéreis.

O equipamento - que libera radiação comparável à de um aparelho de raio-X - deverá chegar a Juazeiro, onde está a biofábrica, em setembro. Até lá, as pupas de moscas produzidas na Moscamed serão irradiadas no laboratório de tecnologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Antes, chegaram a ser irradiadas no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP), em Piracicaba.

A produção local de moscas começou em março deste ano e chega atualmente a 2 milhões de insetos por semana. A capacidade da fábrica, de 200 milhões de moscas por semana, deverá ser atingida entre os meses de abril e maio do próximo ano, segundo estimativa de Malavasi. Desse total, a expectativa é exportar metade e vender a outra metade no mercado doméstico.

O custo de produção de um milhão de insetos é de US$ 160 e o preço de venda no exterior é de US$ 230 (FOB). "Esse diferencial de US$ 70 nos permitiria vender o produto internamente por algo entre US$ 90 e US$ 100, um preço muito barato. É a exportação que vai viabilizar o negócio", explica o professor, que se cercou de jovens profissionais.

Por enquanto, há conversas com dois países interessados em importar as moscas brasileiras: a Espanha e o Marrocos. Em Valença, na Espanha, uma fábrica de moscas está em construção, mas o custo de produção é mais do que o dobro do brasileiro. Aqui, o custo é menor, entre outros motivos, pelas adaptações feitas para se adequar ao apertado orçamento da biofábrica.

A maior fábrica de moscas do mundo fica na Guatemala, com produção semanal de 2,3 bilhões de moscas, construída com dinheiro americano. É para lá que são enviados os técnicos brasileiros para treinamento e é de lá que vem a tecnologia empregada na fábrica de Juazeiro. Em todo o mundo, há ainda fábricas na Argentina, Chile, Peru, México, Havaí, Ilha da Madeira e uma em construção na Austrália.