Título: O sintoma
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 10/09/2010, Política, p. 4

Nas Entrelinhas

Eum revivido Fidel Castro segue na trilha das autocríticas, misturando as explícitas com as nem tanto. Éumdesfile de surpresas.Dias atrás pediu desculpas pela discriminação e perseguição dos homossexuais na Cuba pós-revolucionária.

Agora vem a público dizer que o modelo cubano não deve ser exportado, pois não funcionanemna própria ilha.

Aguardam-se os próximos capítulos, sob os olhares aterrados de quem se habituou a defender qualquer coisa relativa ao status quo cubano, em nome da luta contra o imperialismo ou de sei lá o quê. Estaria então Fidel capitulando diante das pressões capitalistas e imperialistas? Penso que os áulicos espantados não chegariam a tanto.Vão preferir esperaremsilêncio, até saber onde a coisa vai parar.

O establishment cubano busca caminhos para romper os nós que amarrama vida dos ilhéus, mas sem deixar o poder.

Quando Fidel adoeceu escreveu-se, aqui inclusive, sobre uma certa transição desejada pelo Partido Comunista de Cuba, mais ou menos nos moldes da China pós-Mao Tsé-tung. A construção política legada porTeng Hsiao-ping alicerçou-se na rotação de poder intrapartidária como mecanismo essencial para manter o leme firmenas mãos do partido.

Mas uma transição assim suave do mando unipessoal para o unipartidário exige certos requisitos.Umdeles é o férreo controle das atividades políticas e sociais.Oque em Cuba não chega a ser problema.Outro é a criação deumambiente de bem-estar econômico que impeça o transbordamento das naturais guerras intestinas.Ou seja, impeçaumocasosoviético do regime.

Para o partido continuar monopolizando o poder, ele precisa estar coeso.Mas sem prosperidade essa coesão fica inviável, a não ser comumestado policial no último grau.Oque em Cuba é impossível nos dias que correm, dada a relação de forças planetária, o novo governo de centro-esquerda emWashington e o cenário político latino-americano.

Semfalarnaoposição interna.

Até mesmo Luiz Inácio Lula da Silva, o diz-qualquer-coisae-nada-acontece, pagou um preço ao posar sorridente para fotos ao lado de dirigentes cubanos enquanto um preso de consciência dali morria depois de greve de fome. O que, num triste episódio, motivou nosso presidente a comparálo aos presos comuns brasileiros, os bandidos aqui encarcerados por delitos que nada têm a ver com a política.

Pegou mal.

Cuba precisa de prosperidade para manter o regime, o que significa investimento estrangeiro e mais (bem mais) espaço para o capitalismo.Mas Havana não tem o peso específico de Pequim. A estabilidade e o progresso da China são essenciais para toda a humanidade, e por isso o fim do isolamento chinês foi liderado por um dos governosmais conservadores que os EstadosUnidos já tiveram, o de RichardNixon. Pois é.

Já o fim da Guerra Fria, seguido pela emergência da ameaça terrorista global, relegou o tema cubano a prateleiras secundárias na administração dos assuntos mundiais pelaCasaBranca.

SeWashington precisou arquivar as diferenças ideológicascom Pequim em nome da centralidade estratégica da China, a mesma sorte não parece reservada a Cuba depois que a União Soviética se foi.

A população de Cuba transformada em boat people é um cenário indesejável para os americanos.Mas se acontecesse na China seriaumapocalipse global.

Daí que os dirigentes cubanos estejam embusca de uma saída.

Controlada.Meses atrásumexpurgo dizimou politicamente parte da cúpulaemHavana, gente graúda que esboçava cultivar umnúcleode poder paralelo.Comoostempossão outros, foram apenas para o ostracismo,emvez de ir para a cadeia ou o exílio.

Os desafios diante do Partido Comunista de Cuba são imensos, na tentativa de estabilizar a transição e ao mesmo tempo operar uma abertura na economia, sem perder o controle político.

As autocríticas seriais de Fidel Castro são dissoumsintoma.