Título: Lula desintermediou voto da base do MST
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2006, Política, p. A6

O MST e o PT não se misturam. A distância é parte de um processo que se iniciou em 1989 quando, azarão, porém vitimado no segundo turno da primeira disputa presidencial pós-ditadura, o PT e o seu então candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, iniciaram um processo de "institucionalização" da legenda, que até então oscilava entre seguir a trilha da disputa eleitoral ou ser um agente político da luta revolucionária. O afastamento do MST foi concomitante ao processo de tomada do partido pelas forças de centro. Em 2002, o PT e o MST já estavam distantes. Foi discurso eleitoral a conexão estabelecida entre o ex-partido de militância e de movimentos sociais e o mais arrojado movimento pela reforma agrária constituído desde a extinção, pelo regime ditatorial de 1964-1985, das Ligas Camponesas. Na época, toda a estratégia do candidato tucano José Serra, principal oponente de Lula em sua campanha vitoriosa, era deslocá-lo para a esquerda - a guinada petista ao centro tirara do PSDB parcelas expressivas do eleitorado e a ausência delas foi um golpe fatal na candidatura tucana. Comprometidos com um discurso moderado, Lula e seu PT não tiveram constrangimentos de expurgar os compromissos com o MST durante a campanha. No dia de sua posse, Lula recuou e fez uma profissão de fé na reforma agrária - esse foi um tema dominante em seu discurso, junto à promessa de que, em seu governo, os brasileiros tomariam café da manhã, almoçariam e jantariam todos os dias. Os programas de compensação de renda garantiram o último compromisso; os resultados da reforma agrária em seu governo, no entanto, foram tímidos.

Iniciada a campanha eleitoral para a reeleição de Lula, retoma-se o raciocínio de que MST e governo, e MST e PT, são parte inseparável de um projeto de poder. De novo, é um discurso sem grande pé na realidade. Em 2002, o MST apoiou Lula porque considerava que o saldo da gestão de reforma agrária dos governos FHC era enormemente negativo. Uma questão pragmática. Hoje, o MST apóia Lula, mas é o tal do "apoio crítico", que vem acompanhado de inúmeras ressalvas. É um voto circundado por questões mais complexas.

Do lado do MST, o apoio à reeleição de Lula contém de novo razões de ordem pragmática, quais sejam: por piores que sejam os resultados da reforma agrária do Lula, o governo é muito mais tolerante com os movimentos sociais do que o antecessor de Lula por dois mandatos, o tucano FHC; e a política, embora tímida, saiu também do padrão tucano da "reforma agrária de mercado", que desencadeou uma realidade de inadimplência entre pequenos agricultores e recém-assentados. A não-criminalização, contudo, é a principal variante da tolerância do MST com Lula. Seus dirigentes acreditam que a realidade será mais dura num governo Alckmin.

PT não está na órbita das relações do movimento A outra variante do apoio a Lula é mais complexa - mas não menos diferente do que a saia justa em que a política de desintermediação do voto levada por Lula nesses três anos e meio de mandato botou os donos de votos regionais da política tradicional. Também na base do MST - aquela que não é composta nem por líderes, nem por militantes - o apoio a Lula passa dos 80%. São assentados de pouca escolaridade que estabelecem uma identidade quase pessoal com o presidente. Não são petistas, são "lulistas". Na base de acampados e assentados do MST reproduz-se fielmente o que ocorre, por exemplo, nos grotões do Nordeste, onde a população de baixa renda admira, apóia e vota em Lula. Com a diferença que a população pobre que não está na órbita do MST entrou no circuito dos programas sociais do governo. O MST apenas aceitou dentro de seus domínios a cesta básica.

Esse é um fenômeno que está latente em todo o processo eleitoral desse ano, que é novo e tanto a esquerda como a direita deixam escapar: Lula desintermediou o voto para presidente. Tanto o voto tradicional - aquele que, em pequenas localidades, é definido e orientado por políticos tradicionais - como o voto que tendia a ser ideológico pela vinculação com movimentos sociais altamente politizados. Leia-se Lula, não o PT. É ele o depositário da confiança daqueles que se consideram seus iguais. Vindo de um berço operário, Lula é crível como uma pessoa com boas intenções e sensibilidade para tirá-los de um atraso histórico. Se isso vai acontecer ou não - e as dubiedades do seu governo podem indicar que não - é outro problema. Mas o dado novo da realidade é que a inserção política dessa população de baixa renda, no período posterior ao chamado processo de modernização e mundialização econômica concluído nos governos FHC, está sendo feito via identidade pessoal do eleitor com um líder, e não via partidos políticos.

Esse cenário é pouco favorável ao MST "organizado". Primeiro, porque isso é intrinsicamente desmobilizante. Segundo, porque reduziu o poder dos líderes e militantes sobre suas bases de acampados, aumentando a distância entre sua estratégia política e as convicções de seus liderados. Hoje, o MST "organizado" mantém seus vínculos históricos com a igreja progressista, no campo representada pela Comissão Pastoral da Terra, e relações orgânicas com a Via Campesina, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), a Assembléia Popular e a Consulta Popular. Essa última é o ponto de unidade programática entre os grupos ainda partidários da opção revolucionária e caminha para ser um partido político fora da opção institucional, isto é, sem finalidade eleitoral. O movimento ainda coleciona eleitos pelo PT e tem deputados no PSOL, mas isso resultou em outra saia justa: conciliar interesses de duas frentes de esquerda (PT/PCdoB e P-SOL/PSTU e quetais).

Mas um problema governo e MST compartilharão no próximo mandato, seja qual for o eleito. O excesso de otimismo elevou brutalmente o número de acampados no início do governo Lula. O movimento estima que, se o governo acelerar o programa de reforma agrária e assentar o que não assentou até agora, ainda assim sobram 100 mil famílias nos seus acampamentos e de outros grupos de sem-terra. Isso representa uma multidão de 400 mil a 500 mil acampados pelo país afora. É uma panela de pressão e tanto. É possível que carisma pessoal seja pouco para contê-la.