Título: O que Israel se dispõe a negociar?
Autor: Salem Hikmat Nasser
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2006, Opinião, p. A11

Nos últimos dias, novos fatos têm se somado ao quadro geral do conflito entre israelenses e palestinos, numa escalada preocupante. Multiplicam-se ataques a alvos palestinos que, seletivos em princípio, vitimam ainda assim civis inocentes. Instalou-se a controvérsia, que facilmente verte na violência, entre o Fatah de Abbas e o Hamas, governo e milícia.

O último lance nessa disputa é a proposta de referendo sobre o chamado "documento dos prisioneiros", de cujo conteúdo só se tem noticiado o fato de que "tacitamente reconhece Israel". Tudo isso sobre o pano de fundo em que a chamada comunidade internacional (EUA e União Européia) tenta inviabilizar um governo do Hamas e em que Israel prepara terreno e busca apoio para o plano de estabelecer unilateralmente suas fronteiras, como eufemisticamente é descrito o ato de desenhar fronteiras incorporando territórios palestinos ocupados ao que se reconhece internacionalmente como o Estado de Israel.

Dentro desse panorama geral, quem estiver acompanhando notícias e artigos, a partir da vitória do Hamas nas eleições palestinas, pode ficar com a impressão de que tudo estaria resolvido, ao menos tudo seria possível, se apenas o Hamas reconhecesse Israel e renunciasse à violência, ou melhor, garantisse a ausência total de violência contra alvos israelenses.

Essa impressão, que muitos já têm, é falsa. A questão palestina não estaria resolvida se o Hamas reconhecesse Israel e há mais de um problema com as exigências que são feitas aos palestinos, e ao Hamas especificamente.

Até a vitória do Hamas nas últimas eleições legislativas, o Fatah detinha a presidência da Autoridade Palestina (com Abbas, que continua no cargo) e também a chefia do governo. O Fatah, como a OLP de que faz parte, e a Autoridade Palestina, há muito já reconheciam Israel. O Fatah havia igualmente negociado um cessar fogo que incluía o Hamas. O próprio Hamas continuava a observar o cessar fogo até o recente ataque israelense que vitimou uma família palestina na praia de Gaza. E a questão não estava resolvida então.

O que o Fatah não podia nem devia pretender garantir era aquilo que é impossível a qualquer governo e Estado: controle total sobre a violência e compromisso com zero ocorrências. Muito menos pode um não-Estado, a Autoridade Palestina, carente de tudo. Essa responsabilidade imposta aos palestinos e em certa medida aceita por eles desde os acordos de Oslo, do modo como a lêem Israel e os EUA, fornece aos israelenses a permanente desculpa para só negociarem quando bem quiserem, ou para não negociarem de verdade.

Estado admite sair de parte dos territórios ocupados porque o aumento demográfico palestino não permitiria a preservação da natureza judaica de Israel Neste instante, o não-reconhecimento de Israel pelo Hamas e a não-renúncia à luta armada servem à decisão israelense de não negociar, responsabilizando por isso os palestinos, entre os quais dizem não encontrar parceiros para a paz nem interlocutores. A ausência de interlocutor que se disponha a negociar sob as condições impostas serve igualmente aos israelenses de desculpa para agir unilateralmente e, agora, se prepararem a desenhar suas próprias fronteiras incorporando territórios ocupados.

Imaginemos que esse interlocutor fosse encontrado; que o Hamas, como antes dele o Fatah, reconhecesse Israel e lhe pudesse garantir segurança. O que exatamente Israel estaria disposto a negociar nessas circunstâncias?

Um Estado palestino ainda não existe, portanto não se trata de demandar seu reconhecimento por parte de Israel. A questão está mais propriamente em saber se Israel está de fato disposto a permitir que surja uma Palestina viável. Ela está também em saber se está disposto a retornar aos limites pré-1967. Vale a pena lembrar que o direito internacional e a ONU consideram os territórios para além dessas linhas como ilegalmente ocupados por Israel e que hoje o mundo árabe está mais do que disposto a reconhecê-las como marcando a fronteira entre Palestina e Israel. A questão está igualmente em saber se Israel está disposto a reconhecer algum direito palestino sobre Jerusalém e algum direito aos refugiados palestinos desalojados nos últimos 58 anos. Por sinal, essas são as demandas essenciais do documento dos prisioneiros, que se pretende submeter a referendo.

O discurso israelense não indica que se pretenda ceder em um desses pontos e, quando o discurso permite a dúvida, as ações a dissipam. Mesmo hoje, quando o governo de Israel advoga uma retirada de parte dos territórios ocupados, a racionalidade com que pretende justificar isso, inclusive perante sua opinião pública, não está no direito palestino a um Estado próprio, mas sim na percepção de que manter a ocupação, tendo em vista o crescimento demográfico da população árabe-palestina, impossibilitaria, em prazo mais longo, a preservação da natureza judaica de Israel. A mesma racionalidade justifica a seus olhos a decisão de incorporar, sem qualquer referência à legalidade internacional, os territórios ocupados nos quais ao longo do tempo se foram implantando os maiores contingentes de colonos judeus.

Assim como não parece pretender permitir o surgimento de um Estado palestino viável, Israel não parece, enquanto dura o tempo da não-negociação, disposto a renunciar por sua parte à violência: nem a legítima, própria do Estado de direito, que poderia pretender usar contra aqueles que considera criminosos, nem aquela indiscriminada que atinge alvos de assassinato seletivo, mas também vitima inocentes.

Se aceitarmos que o inocente que caminha nas ruas de Gaza não é nem mais nem menos inocente do que aquele sentado numa lanchonete de Tel Aviv, e que o terror que leva uma família ser alvejada por um míssil não é diferente daquele causado por um ataque suicida, precisamos aceitar que de nada adianta que apenas um lado renuncie à violência, sobretudo porque essa renúncia unilateral se mostrará sempre impossível.

É possível que Israel consiga, tendo em vista seu próprio poder militar e econômico, o apoio quase incondicional dos Estados Unidos e as divisões e inúmeros erros palestinos, construir um Estado judeu segundo seu próprio desenho e ao mesmo tempo impossibilitar um Estado palestino efetivo. Resta saber se conseguirá com isto assegurar a paz para si e para outros. Um caminho alternativo é negociar, de verdade, com seus reais adversários.

Salem Hikmat Nasser é professor de Direito Internacional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV) e doutor pela USP.