Título: Melhor é ter sempre mais liberdade
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2006, Eu &, p. D6

Convencer o leitor de que o progresso "não passa de um mito" é o que pretende este livro. É muito improvável, contudo, que atinja tal objetivo. Para quem já é adepto da tese, certamente trará mais munição. E para quem nunca tenha refletido seriamente sobre a questão, o texto talvez provoque dúvidas das mais saudáveis. Todavia, os demais tenderão a achar que o tiro saiu pela culatra. Por mais eruditos que possam ser exercícios de "exegese" ou "desconstrução" da idéia de progresso, inevitavelmente se mostram incapazes de apontar para alguma alternativa que não seja de corte religioso.

Bento XVI, natural e religiosamente contrário ao que chama de "mito": Liberais ou marxistas, todos se deixam levar pela "ideologia do progresso" Não terá sido mera coincidência a escolha desse leitmotiv para cavalo de batalha da ascensão do cardeal alemão Joseph Ratzinger ao papado. Muita gente já deve ter esquecido, mas no finalzinho de 1998 foi justamente o "mito do progresso" o grande mote de uma das primeiras e mais influentes vídeo-conferências promovidas pelo Vaticano, considerada "histórica" em seus registros. Nela, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé lamentou o fato de a sociedade moderna ser vítima do "mito do progresso", apesar das graves catástrofes do século XX, como a bomba de Hiroshima. E enfatizou que "tanto a visão do mundo liberal, como a marxista - as duas grandes matrizes da consciência moderna - se inspiram na ideologia do progresso". Ao contrário, o sentido cristão deve ser, diz Bento XVI, a "dimensão do encontro entre a graça divina e a liberdade".

Não são mais profícuos os exercícios agnósticos dessa "desconstrução" ou "exegese" da idéia de progresso. Conseguem, no máximo, pôr seriamente em dúvida a sobrevivência da humanidade. No entanto, o fato é que a espécie humana já conhece seu prazo máximo de validade, pois ele está diretamente determinado por sua dependência da energia solar. O que os humanos talvez possam realmente decidir é se procurarão se aproximar desse fim inevitável, ou se preferirão gozar intensamente de uma permanência bem mais curta, porém muito mais excitante. E será impossível que evitem drástico encurtamento de sua existência se não estiverem convictos de que, sim, podem progredir. Ao contrário de todo o resto da natureza, as sociedades humanas vivem em simbiose com suas culturas, o que permite que conhecimentos e experiências adquiridos pelos mais maduros sejam transferidos aos que os sucedem. Daí porque é tão freqüente que haja progresso nas mudanças da história humana, fenômeno inteiramente estranho às mudanças na história natural, ao contrário do que supôs o então cardeal na citada vídeo-conferência.

Será que isso é um mito? Depende, é óbvio, do que se entenda por mito, palavra das mais traiçoeiras, que deveria merecer mais cuidado se escolhida para título de livro. Há mais de trinta anos Celso Furtado evitou tal imprudência ao publicar aquela pérola de 90 páginas intitulada "O Mito do Desenvolvimento Econômico", trabalho que deveria ser livro de cabeceira de quem nutre saudáveis dúvidas sobre o progresso (Paz e Terra, 2005). Segundo ele, a função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros. Por isso, é dos mais ingênuos o viés pejorativo da afirmação "o progresso não passa de um mito". Se os antropólogos dão tanta importância ao estudo dos mitos é exatamente por que são narrativas mediante as quais as sociedades se expressam, indicam seus caminhos, discutem consigo mesmas.

Ora, é justamente esse tipo de reflexão coletiva que vem sendo provocado por pelo menos dois movimentos. Há poucos anos, pelo Redefining Progress Institute (www.redefiningprogress.org). E desde 1991, pela corrente auto-intitulada "pós-desenvolvimento", criadora e animadora da Rede de Objeção ao Crescimento para o Pós-Desenvolvimento - ROCADe (www.apres-developpement.org).

Só pode ser uma pena, então, que tais fenômenos também tenham ficado fora do escopo do livro que acaba de ser lançado, já que o principal objetivo dos intelectuais que aderiram a tais movimentos foi justamente a crítica da idéia de progresso. E coube a um dos mais ilustres - o professor Teodor Shanin - reconhecer, contrariado, qual é a principal armadilha para quem opta por rejeitar a retórica do progresso: a falta de alternativa que evite a inconseqüência.

São poucas as diferenças discerníveis entre a ampla literatura produzida pela corrente do "pós-desenvolvimento" e o ótimo conteúdo dos seis capítulos agora propostos pelo presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI). É oportuno, então, que sejam realçadas duas: o uso que faz da noção de "hegemonia" e seu desejo de libertar o mito do progresso da "lógica do capital".

Para a corrente do "pós-desenvolvimento", os maiores estragos provocados pela idéia de progresso são feitos no mundo periférico por elites que nada têm de "hegemônicas" - muito ao contrário. Gilberto Dupas, de um prisma diametralmente oposto, enfatiza que o principal problema estaria "nos discursos hegemônicos de parte dominante das elites". E, se fosse mesmo fiel ao conceito de hegemonia em Antonio Gramsci, como anuncia na página 16, não lhe teria escapado que nesta época nenhuma hegemonia poderia ser exercida em nome de algum valor que se oponha ao de progresso. É inerente ao sentido gramsciano da noção a necessidade de que seja exercida em seu nome.

Mutatis mutandis, a mesma dificuldade agride a proposição de que o mito do progresso seria prisioneiro de uma "lógica do capital". Além de o leitor ficar sem saber que "lógica" é essa, talvez prefira pensar que esse mito seja muito mais duradouro, tanto por ter nascido milênios antes do capitalismo, quanto por poder conservar alta esperança de vida após sua eventual superação. Ou seja, em vez de libertar o mito do progresso de uma etérea "lógica do capital", como quer o autor, talvez se trate de mobilizar todos os anseios por progresso para que continue a avançar o processo de expansão da liberdade humana. A verdadeira incógnita é outra: a de um progresso que não mais dependa da prosperidade material, algo que por muito tempo permanecerá impossível, mas que em algum momento se tornará indispensável, como alertou o saudoso Georgescu-Roegen (1906-1994). Infelizmente, outra questão que também ficou fora do alcance deste bem-vindo lançamento.

"O Mito do Progresso" - De Gilberto Dupas. Ed. Unesp, 309 págs., R$35

José Eli da Veiga é professor titular do departamento de economia da FEA/USP e autor do livro "Meio Ambiente & Desenvolvimento" (Editora Senac, 2006)