Título: Medicamentos fracionados e drogarias
Autor: Rodrigo Alberto Correia da Silva
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2006, Legislação &, p. E2
O Decreto 5.775, de 10 de maio deste ano, regulamentado pela Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 80, de 2006, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pretende estender para as drogarias a possibilidade de venda de medicamentos fracionados, conferida em janeiro de 2005 às farmácias de manipulação. Mesmo com a permissão contida no citado decreto presidencial e na resolução da Anvisa, a venda de medicamentos fracionados só pode ser feita caso o laboratório farmacêutico adicione ao registro do medicamento, perante a agência, uma embalagem própria.
Diante dessa determinação, os laboratórios farmacêuticos não se animaram a registrar citadas embalagens próprias para o fracionamento de medicamentos, pelo receio de que, no comparecimento do paciente à farmácia de manipulação, lhe fosse oferecido o medicamento manipulado em substituição ao medicamento originalmente prescrito pelo médico. Embora a substituição de medicamentos prescritos só seja permitida por nossa legislação entre o medicamento de referência e o medicamento genérico, e ainda no caso de formulações serem necessárias às receitas médicas dos produtos a serem formulados, a prática existe no comércio farmacêutico menos atento às normas legais e princípios éticos. Isso justifica o receio dos laboratórios farmacêuticos.
Vale apontar, ainda, outros obstáculos que impedem a venda fracionada de medicamentos e a explicação para que tal prática não tenha decolado, mesmo se considerarmos que alguns laboratórios farmacêuticos poderiam ser seduzidos pela idéia de acessar outros milhares de pontos de venda que são as farmácias de manipulação. O que confirma que a economicidade da medida é duvidosa, se considerada a necessidade de impressão de bulas para cada fracionamento, o desenvolvimento e utilização de novas embalagens, a impossibilidade de fracionamento de produtos cujo tratamento deve se ater a quantidades mínimas já contidas nas embalagens normais, como, por exemplo, os antibióticos, e a incongruência de se fracionar medicamentos de uso contínuo.
A venda fracionada de medicamentos não atende aos requisitos de segurança sanitária, tendo em vista as condições de muitas farmácias de manipulação e agora também das drogarias no Brasil. Além disso, pode possibilitar a utilização de medicamentos por período inferior ao necessário para o tratamento e ainda a possibilidade de a falta da caixa do medicamento gerar confusão ao consumidor na hora de ingerir diversos produtos diferentes. Com o fracionamento, também perde-se o controle das quantidades vendidas de medicamento, o que pode, inclusive, gerar sonegação fiscal e facilitar a falsificação de produtos.
O decreto não pode perverter conceitos de legislações superiores para burlar uma limitação expressa O que impediu a liberação do fracionamento de medicamentos pelas drogarias foi um dispositivo da Lei nº 5.991, de 1973, que determina que as drogarias devem vender medicamentos em suas embalagens originais. Todavia, o que se pretendeu mesmo foi burlar a proibição de intelecção simples e imediata com um jogo de palavras, no qual o Decreto nº 5.775, de 2006, cria um conceito de embalagem original "compreendendo as embalagens destinadas ao fracionamento". Ora, é evidente que a embalagem original é aquela principal, constante do registro do medicamento, e a embalagem para fracionamento é assessória, portanto distinta daquela. O conceito e a palavra original só podem qualificar uma das embalagens do medicamento e não mais de uma, como se pretende.
Ao se imaginar que a embalagem original do medicamento seria a fracionável, automaticamente se está afirmando que a não fracionável não o é e, portanto, não poderia ser vendida em drogarias. A classificação de uma como original exclui a da outra e, obviamente, não se pode acatar interpretação que impeça a venda de medicamentos em embalagens não fracionáveis, sob pena de parar a comercialização nacional de medicamentos.
Para aqueles que não se submetem à lógica e ao bom senso vale apontar que, nos termos da Lei nº 6.360, de 1976, que rege o registro de medicamentos, "as drogas, os medicamentos e quaisquer insumos farmacêuticos correlatos, produtos de higiene, cosméticos e saneantes domissanitários, importados ou não, somente serão entregues ao consumo nas embalagens originais ou em outras previamente autorizadas pelo Ministério da Saúde", deixando claro que a embalagem principal do registro do produto é a original e que as fracionáveis ou especiais serão as outras previamente autorizadas pelo Ministério da Saúde.
Portanto, resta cristalino que o decreto, por ser norma inferior, não pode perverter os conceitos contidos nas legislações que lhe são superiores para burlar uma limitação expressa quanto à venda de medicamentos fracionados em drogarias, pelo que a mesma é ilegal e logo natimorta em nosso sistema jurídico.
Rodrigo Alberto Correia da Silva é advogado especialista em direito empresarial e negócios da saúde e sócio do escritório Correia da Silva Advogados