Título: Espólio da Varig provoca racha
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2006, Empresas &, p. B1

A divisão do espólio da Varig fez explodir uma guerra comercial no setor aéreo. De um lado, TAM e Gol constituíram uma aliança informal. Elas defendem que as linhas domésticas abandonadas pela Varig sejam distribuídas de acordo com a atual participação de cada empresa no mercado. Querem também que a concessão para explorar essas rotas seja dada em caráter definitivo pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Só dessa forma há segurança suficiente para arrendar novos aviões e fazer investimentos, justificam as líderes do mercado doméstico, que juntas somam 79% de participação.

De outro lado, as companhias menores se mobilizaram. Nessa frente estão OceanAir, Webjet e BRA. Elas vêem na paralisação da Varig uma oportunidade única para acelerar os seus planos de crescimento, mas têm frotas menores e dificuldades para providenciar um número suficiente de aeronaves para reforçar as operações. Por isso, preferem que a distribuição dos "slots" (horários de pouso e decolagem) deixados pela Varig seja feita em caráter provisório. Pleiteiam ainda que a divisão ocorra de forma inversamente proporcional à atual participação de mercado e que duas companhias - numa óbvia referência a TAM e Gol - não ultrapassem um teto de 60% de ocupação dos "slots" de aeroportos mais concorridos, como é o caso de Congonhas, em São Paulo.

Em meio a toda essa discussão, no fim da tarde de ontem a TAM anunciou vôos de reforço hoje e amanhã, todos com saída e chegada em Congonhas. A decisão atendeu a pedido do governo para suprir a carência deixada pelo cancelamento de vôos da Varig. Serão seis vôos hoje e oito na sexta, interligando São Paulo a Brasília, Porto Alegre e Curitiba. Segundo a TAM, se houver necessidade depois de sexta, novos reforços deverão ser disponibilizados.

A Gol informou que também terá vôos de reforço a partir de sexta e até domingo, mas não divulgou quais as rotas.

O Valor apurou que a divergência entre as grandes e as pequenas empresas sobre os critérios de distribuição dos "slots" gerou um clima de muita tensão no gabinete de crise montado pelo governo no Ministério da Defesa e rachou a diretoria da Anac. O diretor-presidente da agência, Milton Zuanazzi, alinha-se à posição das companhias menores e defende as concessões provisórias. A diretora Denise Abreu, relatora do plano de contingência, propõe uma solução duradoura e a rápida implementação de novos critérios para regulamentar a partilha de slots.

Os dois diretores da Anac, entretanto, concordam em um ponto que desagradou fortemente a TAM e Gol. Insistem em que as companhias se responsabilizem pelos passageiros da Varig deixados no chão. Ou seja, além de alocar os passageiros em seus vôos, querem que as empresas assumam o compromisso de bancar despesas de hospedagem e alimentação dos passageiros que não puderem ser embarcados e façam fretamentos de aeronaves para trazê-los de volta.

Na terça-feira, TAM e Gol aceitaram essa condição a princípio, mas voltaram atrás após horas de reuniões. A Gol afirmou que, ao embarcar passageiros da Varig que ficaram em solo, já deixou de ganhar mais de R$ 500 mil com a venda de bilhetes, apenas desde o início da semana. A TAM alegou ter embarcado passageiros da Varig que, se tivessem pago pela viagem, teriam rendido cerca de US$ 1 milhão em receita. As duas companhias entendem que as operadoras de turismo devem compartilhar os custos e a responsabilidade pelo retorno de passageiros da Varig, principalmente no exterior, se tiverem vendido esses bilhetes.

Insatisfeitas com o rumo das discussões, TAM e Gol cogitaram abandonar o plano de contingência em preparação pelo governo e seguir seus próprios planos de expansão. O impasse levou a uma atuação direta do Palácio do Planalto. A secretária-executiva da Casa Civil, Erenice Guerra, conversou por telefone com os executivos das duas companhias. O ministro da Defesa, Waldir Pires, também pediu empenho, mas as empresas saíram contrariadas, segundo fontes que presenciaram as conversas.

As empresas menores ameaçam elevar o tom. Reservadamente, dizem que vão recorrer à Secretaria de Direito Econômico e ao Cade. Para elas, o grande interesse é aumentar a presença no aeroporto de Congonhas. Segundo cálculos de uma das companhias, se a distribuição dos "slots" da Varig seguir a atual participação de mercado, a fatia dominada por TAM e Gol em Congonhas subirá de 68% para 84% dos vôos.

"A Anac foi criada para fomentar o equilíbrio e a concorrência no setor", reclama um empresário. Para ele, existe o risco de criação de um duopólio, que manterá as companhias menores afastadas dos destinos mais cobiçados do setor, como a ponte aérea Rio-São Paulo. A grande disputa agora gira em torno dos critérios para distribuição de "slots" vagos, colocados em consulta pública pela Anac. O prazo para contribuições acabou na semana passada.

De acordo com a minuta de resolução elaborada pela agência reguladora, as empresas que já atuam em um determinado aeroporto ficarão com 80% dos novos slots disponíveis e precisam ter um índice de liqüidez superior a um "Aparentemente, é uma proposta justa. Mas só aparentemente, porque isso vai bipolarizar o aeroporto de Congonhas", afirma Átila Yurtsever, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Aéreo Regional e porta-voz das companhias menores.

As mudanças pedidas por essas empresas, além de um teto de 60% dos slots para as duas maiores companhias em um aeroporto, envolvem regras mais rigorosas para o cancelamento de vôos e a proibição de conexões em Congonhas para passageiros provenientes de cidades como Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Pampulha e Santos Dumont. O redirecionamento dessas conexões para Guarulhos tende a abrir espaço em Congonhas.

As pequenas também pedem que o índice de liqüidez só passe a valer a partir do balanço financeiro de 2006. Se for usado como base o ano passado, conforme propõe a Anac, empresas como a OceanAir já ficam imediatamente de fora da disputa. Insatisfeitas, elas já falam até em deixar o Sindicato Nacional das Empresas Aéreas (Snea), hoje dominado por TAM e Gol -que têm, juntas, 50 dos 90 votos da principal entidade do setor-, e paradoxalmente presidido até o próximo mês de outubro por um executivo oriundo do grupo Varig, George Ermakoff, ex-presidente da Rio Sul.