Título: Poderes da República não podem invadir atribuições
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/06/2006, Opinião, p. A10

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao recuar da decisão intempestiva do seu presidente, ministro Marco Aurélio de Mello, de tornar mais rígidas as regras de verticalização para o pleito de outubro, pode ter lançado uma pequena luz sobre a confusão institucional reinante no país. O plenário do TSE e o próprio ministro deram uma lição de humildade, ao reconhecer que exorbitaram de sua atribuição de interpretar leis. Tinham ido, de fato, além dela: legislaram, simplesmente.

O recuo do TSE talvez seja o primeiro sinal de bom senso num país onde o Judiciário acha que tem o poder de legislar; o Executivo usa à farta o recurso da medida provisória, que, diz o nome, deveria ser provisória - e portanto legisla; e o Congresso abre mão de fazer leis porque prioriza as ações investigatória e policial, para as quais não tem competência específica e, por isso, não consegue definir claramente culpas nem manter ninguém na cadeia - até porque não é esse o seu papel.

Por trás da ânsia legislativa do Executivo e do Judiciário reside a constatação de que o Legislativo não desempenha suas funções e, portanto, restaria aos dois outros poderes suprirem suas deficiências. O Legislativo, de fato, é um poder em crise. Contraditoriamente, sua crise data da redemocratização, quando os partidos, até então sob a camisa de força do bipartidarismo da ditadura, formaram um novo quadro partidário. O fato é que a redemocratização, nos seus pouco mais de 20 anos, é recente, e o sistema político ainda não conseguiu amadurecer. É um equívoco democrático, no entanto, colocar-se acima do sistema partidário por entender que dele decorrem todas as mazelas inerentes ao amadurecimento da democracia. O sistema não se consolida por decreto, ou por leis urdidas nos tribunais para "forçar" o amadurecimento partidário.

Desde a redemocratização, apenas o presidente Fernando Henrique Cardoso - e só no seu primeiro mandato - conseguiu maioria parlamentar para produzir as leis e emendas constitucionais necessárias à consolidação de seu projeto. Os demais governos - de José Sarney, Fernando Collor, em parte Itamar Franco (embora este tivesse sido mais poupado) e Luiz Inácio Lula da Silva - tiveram grande dificuldades com o Congresso e usaram fartamente das medidas provisórias para governar e, antes dela, do decreto-lei da ditadura. O presidente FHC, com sua maioria, também fez uso farto das MPs - sua ampla base parlamentar, no entanto, garantia tolerância a esse tipo de prática. Dessa substituição do Congresso pelas MPs resultou uma relação entre Executivo e Legislativo que nunca favoreceu a formação de governos de coalizão de fato, mas alianças eventuais em troca de favores. Essa relação esteve há léguas de distância de ajudar o amadurecimento do sistema partidário. É uma situação em que o nanismo político é alimentado por uma relação personalista entre o detentor do poder e parlamentares avulsos, e onde os partidos deixam de ter qualquer importância.

O Judiciário também forçou a mão, ao se auto-delegar o poder de legislar sobre o sistema político. Partiu do princípio de que forçaria o amadurecimento se, com seu conhecimento e sabedoria, exigisse dos partidos mais do que as leis pediam. Um exemplo vivo disso é a decisão do TSE de quatro anos atrás, que instituiu uma verticalização que não existia na lei, nem na Constituição. O tribunal, do nada, definiu que os partidos que fizessem coligações nacionais não poderiam fazer alianças diferentes nos Estados, o que foge completamente da tradição eleitoral do país. Se a intenção era a de forçar maior organicidade partidária - e, em consequência, um Legislativo de maior qualidade - estão aí os fatos. Depois de eleições verticalizadas, formou-se uma legislatura que - há consenso em torno disso - é uma das mais fracas da história recente. Além disso, foram os eleitos da verticalização que urdiram acordos como os denunciados no escândalo do "mensalão".

Não existem mágicas para amadurecimento partidário, nem se pode prescindir do sistema político para governar. Apenas o exercício pleno da separação de poderes, mesmo que isso resulte em conflitos, poderá forçar os partidos políticos da jovem democracia brasileira a se tornarem maduros e responsáveis com seus deveres.