Título: Uma nova reestruturação em curso
Autor: Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein
Fonte: Valor Econômico, 13/06/2006, Especial, p. A12

Desde o início da década de 90 o setor produtivo brasileiro já passou por diferentes fases de reestruturação. A primeira fase, entre 1991 e 1995, foi provocada pela abertura da economia e caracterizou-se por um ajuste rápido e defensivo que resultou em um aumento da eficiência do setor produtivo em geral. A reestruturação, naquele momento, baseou-se no aumento dos componentes importados e em uma revisão dos processos produtivos e administrativos.

Se de um lado introduzia a concorrência, a abertura, de outro, franqueava o acesso tanto a máquinas e equipamentos mais modernos como a insumos e componentes mais baratos. Rompia-se assim a cumplicidade perversa entre os diferentes elos das cadeias produtivas onde a ineficiência de uns era repassada aos outros, sucessivamente, até chegar ao consumidor final um produto caro, defasado tecnologicamente e, muitas vezes, de má qualidade. Segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), neste período a produtividade do setor industrial cresceu 7,2% ao ano em média.

Na segunda fase, entre 1994 e 1998, a reestruturação produtiva ganha contornos mais nítidos, aprofundando-se com o aumento das taxas de investimento. Em 1994, a variação anual real da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) atinge sua maior taxa na década, 14,3%, mantendo-se positiva e elevada nos anos subseqüentes, com exceção de 1996.

Apesar da crise do México e percalços da economia brasileira, cujas elevadas taxas de juros dificultavam a acessibilidade aos recursos necessários à reestruturação, o setor produtivo respondeu aos desafios impostos tanto pela abertura da economia como pela valorização do câmbio, motivado, sobretudo, pela significativa ampliação do mercado consumidor resultante do controle da inflação.

Com a maxidesvalorização de 1999 e a introdução do câmbio flutuante tem início uma nova fase na reestruturação do setor produtivo brasileiro que vai até 2003.

Pela primeira vez as exportações são introduzidas nas estratégias empresariais brasileiras. Até então vistas como válvula de escape para os momentos de desaceleração do mercado doméstico, as exportações passam a ser vistas como decisivas não só como hedge cambial, mas também como acesso a financiamento mais barato e a um mercado consumidor ampliado, compatível com as novas escalas de produção de uma indústria que se modernizava e, conseqüentemente, ampliava sua capacidade produtiva.

Mais ainda, as exportações passam a representar a oportunidade de se minimizar a crescente carga tributária que recai sobre a produção voltada para o mercado doméstico. Contribuem também para acelerar a introdução inovações tecnológicas e a opção das empresas pela abertura de capital, como forma de crescerem mais rapidamente e de forma sustentada.

É um momento de mudança e aprofundamento da inserção brasileira no processo de globalização, de uma forma positiva, através do incremento das exportações.

Em 2003 tem início uma nova fase de ajuste, que vem prevalecendo até os dias de hoje. Da mesma forma que na segunda metade dos anos 90, a valorização cambial e o juro extremamente elevado por um longo período são os determinantes centrais que vêm pautando este novo processo. Também guarda semelhança com as reestruturações pelas quais o país já passou nos períodos mais recentes pelo fato de não ser um processo linear, transparente e de fácil compreensão. As semelhanças param por aí. Em tudo o mais, o atual processo é diferente, nos seus determinantes e nos seus possíveis resultados.

É um cenário curioso, no qual, ao contrário dos anos 90, tanto o fantasma do retrocesso no controle da inflação como o das crises de balanço de pagamentos estão afastados. Mais ainda, o país tornou-se auto-suficiente em petróleo e sofisticou sua matriz energética, com o álcool e o gás natural que aumentou sua participação de 3,7% em 1998 para 8% em 2004; o crédito ao consumidor cresceu exponencialmente, assim como o mercado de capitais, que não existia em sua função básica de financiamento das empresas, "tomou corpo" e sofisticou-se significativamente, passando a ser uma real alternativa de financiamento.

Entretanto, apesar desses inequívocos avanços, a economia pode até crescer, mas não decola.

Nos anos 90, com as privatizações, o boom do mercado interno pós-Plano Real e a aposta que se fazia no Mercosul, o Brasil tornou-se o grande receptor dos novos e crescentes fluxos de investimentos externos diretos dos países desenvolvidos. A vinda de capitais externos, se de um lado provocava certa desnacionalização e concentração do setor produtivo, permitia também não só um financiamento mais barato da reestruturação, mas uma agilidade e velocidade que o capital nacional não teria imprimido ao processo.

Hoje o cenário é outro. Externamente, o principal condicionante do atual movimento de reestruturação do setor produtivo brasileiro chama-se China. O Brasil, quer pelas suas dificuldades internas, quer pela enorme atratividade da China, perdeu espaço nos fluxos mundiais de investimento externo direto. Não bastasse isso, a invasão de produtos chineses, baratos e de qualidade crescente, vem ameaçando vários setores da economia brasileira cuja produtividade e competitividade são incompatíveis com a chinesa, mesmo levando-se em conta os custos de frete.

A valorização cambial que, apesar dos problemas que criou para vários setores da economia entre 1995 e 1999, ajudou a modernização do parque produtivo via importações, tem agora um impacto muito mais negativo. Não só porque naquele período o mercado consumidor brasileiro era crescente e voltado para produtos de mais alto valor adicionado, como a China ainda não era uma ameaça tão dramática como é agora. De produtora de sapatos de baixa qualidade, a China vem escalando o ranking de qualidade dos produtos tradicionais e invadindo outros setores, como o de bens de capital e automóveis.

Além disso, o mundo atual é muito mais acessível do que era nos anos 90, quando a internet apenas começava e o Brasil engatinhava no seu processo de abertura, com empresas e empresários desconhecendo os caminhos e meandros das importações.

Internamente, vários são os condicionantes do processo, além dos já mencionados - valorização cambial e elevadas taxas de juros. Do ângulo dos custos, a carga tributária, apesar de já crescente, não era tão elevada nos anos 90. Atualmente cerca de 37% do PIB, os impostos têm um peso significativo no custo das empresas, chegando a inviabilizar certos setores, principalmente os que enfrentam a concorrência chinesa mais de perto.

A estrutura de gastos do setor público também vem impactando a atual fase de reestruturação, principalmente pela queda drástica no item investimentos em infra-estrutura acoplada à decisão política de parar com concessões e privatizações. A deterioração das estradas e portos não só é crescente, como amplificada pelo atual volume de comércio exterior, que exige um apoio muito maior. Da mesma forma que a elevada carga tributária, a carência de infra-estrutura representa um custo adicional significativo para as empresas em geral.

Do ponto de vista da demanda, forte indutora da reestruturação dos anos 90, tudo leva a crer que vem se consolidando um mercado consumidor de produtos populares de baixo valor agregado paralelamente à perda de poder aquisitivo das classes médias, consumidoras de produtos mais sofisticados e maior valor agregado. Entre 1997 e 2004 o crescimento médio anual da massa de rendimentos foi de 8,8% até 1 salário mínimo, 13,4% entre 1 a 2 mínimos, 8,8% de 3 a 5 mínimos e de menos 4,4% acima de 20 mínimos.

Externamente, o principal condicionante do atual movimento de reestruturação produtiva do Brasil chama-se China Se nos anos 90 a ampliação do mercado consumidor deveu-se ao ganho "once and for all" decorrente do fim do imposto inflacionário e ao Mercosul, hoje o mercado amplia-se graças a uma redução lenta, porém persistente, da desigualdade na distribuição de renda e ao crescente papel do crédito no consumo das camadas de menor renda da população.

A distribuição de R$ 6,5 bilhões em 2005, e prováveis R$ 9,5 bilhões em 2006, do Bolsa-Família e de R$ 33 bilhões do crédito consignado, a elevação do salário mínimo, e o ganho no poder aquisitivo da população de baixa renda decorrente da deflação nos preços de alimentação alçam ao mercado consumidor uma população até recentemente à margem deste mercado, moldando uma nova estrutura de consumo e uma nova divisão econômica regional no país.

É um mercado diferente do que começou a ser moldado logo após a abertura da economia e o Plano Real, com outro perfil de consumo, resultando uma estrutura produtiva diferente, dependente de altos volumes de produção, tendo em vista suas baixas margens de retorno.

Em outras palavras, a atual retomada da economia a partir dos setores que estão se beneficiando do aumento do consumo da população de baixa renda, não induz à retomada de investimentos nos setores de maior valor agregado e sofisticação tecnológica.

A conseqüência imediata foi uma inusual disparidade setorial, a qual, mantido o cenário atual, teria tudo para cristalizar-se - com o Brasil produzindo para o mercado popular e as importações suprindo o mercado de produtos mais sofisticados - não fosse, mais uma vez, a China.

Até recentemente, muitos empresários duvidavam da permanência da valorização do câmbio, acreditando que o país não incorreria novamente no mesmo equívoco. Ao consolidar-se a percepção que a valorização cambial não seria passageira, começou-se a montar estruturas pesadas de importações de componentes, conjuntos, partes e ou produtos finais que já alçaram a China ao posto de segundo país entre os exportadores para o Brasil.

Além das crescentes importações legais e/ou subfaturadas de produtos chineses baratos ameaçarem os setores nacionais que poderiam se beneficiar desta nova estrutura de consumo, é óbvio o esforço chinês para sofisticar e modernizar seus produtos e processos de forma a abocanhar novos e crescentes mercados.

O caso da perda de competitividade dos setores moveleiro, calçadista e têxtil, tanto no mercado interno quanto no mercado externo, é uma forte sinalização do perigo que correm outros setores. A produção de bens eletrônicos de consumo vem sendo substituída por importações de produtos completos, transformando crescentemente os produtores industriais em distribuidores de produtos.

Enquanto a participação dos produtos manufaturados da China nas exportações globais passou de 2,91% em 1990 para 11,07 % em 2004, a da América Latina e Caribe passou de 2,45% para 3,96% . Isso em um período no qual a China apenas deslanchava seu processo de industrialização e modernização.

Embora os setores produtores de commodities venham se beneficiando de altas nas cotações internacionais, em outros setores exportadores, mas de produtos de maior valor agregado, o impacto da valorização cambial já começa a ser sentido. Os casos mais emblemáticos são os dos setores automobilístico e de bens de capital nos quais, mais uma vez, a China vem ocupando espaço e roubando mercados. Com plantas mais recentes, escalas de produção maiores, políticas industriais agressivas e uma moeda artificialmente desvalorizada, a China vem tornando-se um competidor forte o suficiente para ameaçar o desempenho dos setores no Brasil no médio e longo prazos.

Já é palpável a redução dos investimentos para expansão dos setores exportadores. Além disso, um crescente número de empresas brasileiras vem investindo em plantas e unidades no exterior, fugindo das dificuldades locais com câmbio e custos, e posicionando-se em países que negociaram acessos privilegiados nos grandes mercados, como Chile, México, Costa Rica, Europa Oriental ou mesmo na China. Os dados recentes mostram que os investimentos brasileiros no exterior já alcançaram US$ 3,5 bilhões de janeiro a abril de 2006, quando no mesmo período de 2005 foram de apenas US$ 800 milhões e em todo o ano passado foram de US$ 2,5 bilhões.

É, portanto, uma retomada com bases precárias, cuja consolidação, mantidas as atuais tendências, está ameaçada em um prazo o qual, apesar de indeterminado, parece inexorável.

As grandes incógnitas do atual cenário são os setores de construção civil e turismo. A construção civil, que representa 66% do investimento, dá sinais de retomada e pode contribuir para dar um fôlego maior à atual fase de crescimento. As perspectivas de baixas taxas de inflação e conseqüentes reduções dos juros vêm permitindo o alongamento dos prazos de financiamento de imóveis, condição "sine qua non" para a performance do setor. Dada a demanda reprimida por habitação no país, não seria surpreendente um boom capaz de dar sustentação a taxas elevadas de crescimento do setor imobiliário. A grande dúvida é a capacidade de endividamento da classe média, mesmo com o alongamento de prazos de financiamento.

No caso do setor de turismo, muito associado à construção civil, sabe-se que vem ocorrendo uma verdadeira revolução, principalmente no Nordeste brasileiro, com grande fluxo de investimentos estrangeiros, principalmente portugueses, espanhóis e italianos, atraídos por sol o ano todo, baixos custos de terra e mão-de-obra, proximidade da Europa e menor risco de ataques terroristas.

Com poucas estatísticas sobre o setor, é difícil analisar a sustentabilidade desses investimentos. Pode-se dizer, entretanto, que sem a demanda de uma classe média nacional será difícil manter o fluxo apenas com o turismo europeu, como todo o turismo baseado em modas e estações.

Com o achatamento da renda das classes médias, estamos assistindo à construção de um modelo extremamente frágil, que se apóia cada vez mais no consumo popular, cuja renda deriva de gigantescas e insustentáveis transferências governamentais, totalmente dependentes de um cenário internacional benigno, da manutenção da capacidade de tributação no auge e de um câmbio no seu limite de baixa.

Não só é uma transferência de renda cuja manutenção depende das condições de financiamento do gasto público, como vai conformando uma estrutura produtiva que não gera emprego, investimentos e grandes inovações, não cria setores novos e vai minando a competitividade da industria brasileira, cedendo proporção crescente da oferta para as importações.

José Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein são economistas da MB Associados. Email : lidiagoldenstein@uol.com.br e jr.mendonca@mbassociados.com.br