Título: Em busca de fôlego para concluir Doha
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2006, Brasil, p. A2

Dia desses, ao entrar, por volta do meio-dia, na sede da Organização Mundial do Comércio (OMC), cruzei com um curioso personagem de calção, camiseta, óculos escuros e uma fita na cabeça que saía para correr. Era Pascal Lamy, o diretor-geral da entidade. Ele tem toda razão em procurar melhorar o fôlego, diante da verdadeira maratona que é sua principal tarefa: concluir a Rodada Doha, a negociação para liberalizar o comércio mundial.

O termo "reunião crucial" na rodada já virou quase piada na OMC, tão desgastado que ficou com sucessivos encontros ministeriais que resultaram em fiascos. Mas desta vez é sério. As próximas semanas serão decisivas para determinar se a negociação termina no prazo previsto, em dezembro deste ano, ou desliza para 2007. Ou, empurrada pelas divergências, para 2009 ou 2010.

Lamy prepara uma reunião ministerial para o fim deste mês em Genebra, talvez com cerca de 50 ministros. Quer tentar obter, enfim, um acordo final sobre as modalidades para as negociações agrícola e industrial, algo que estava previsto para ser aprovado em 2003 em Cancún (México).

O pacote de modalidades inclui as fórmulas e cifras para reduzir tarifas e subsídios, além das exceções para produtos e setores sensíveis, que continuarão protegidos de maior concorrência - ou seja, é a alma da rodada. Os outros temas são considerados periféricos e serão decididos mais facilmente com as modalidades aprovadas. O esboço dessas modalidades deve ser apresentado pelos mediadores das duas negociações na semana de 19 a 23 de junho, preparando o terreno para alguma decisão ministerial.

Só que Celso Amorim, reconhecidamente um dos ministros mais influentes nessa rodada, tem repetido que as decisões, a esta altura, precisam ser tomadas não pelos negociadores, mas pelos presidentes e chefes de governo. Daí a expectativa em relação à reunião de cúpula do G-8, espécie de diretório político do planeta, marcada para 15 a 17 de julho em São Petersburgo (Rússia). Se não houver resultados no fim do mês em Genebra, ainda haveria essa chance de o G-8 desbloquear a rodada. Uma discussão de comércio é ainda mais provável, porque presidentes de países emergentes, como Brasil, China, México e África do Sul, foram convidados pelo G-8 para contatos à margem da reunião formal do grupo.

Boa parte dos países está baixando o nível de ambição da rodada. Brasil e União Européia visivelmente se aproximaram para pelo menos alcançar um resultado modesto de liberalização. A Austrália, líder do Grupo de Cairns, que exigia a mais ampla abertura agrícola, também já admite algo próximo da posição intermediária do G-20, o grupo liderado pelo Brasil. O Japão acena com melhora em sua oferta agrícola - mas, como a UE, dentro de fortes limites.

Acordos só saem em meio a crises Nesse cenário, os Estados Unidos estão isolados na demanda de enormes compromissos de abertura dos mercados. A administração de George W. Bush enfrenta forte pressão do Congresso e de seus agricultores para obter um pacote significativo de corte de tarifas que compense uma baixa dos subsídios pagos por Washington.

Enquanto todo mundo continua esperando dos EUA uma proposta de corte maior nos subsídios internos agrícolas, os americanos insistem, por sua vez, na enorme dificuldade que terão para aceitar um acordo modesto, porque correria o risco de ser rejeitado no Congresso.

Utilizam simulações feitas pela Austrália, analisando o impacto de propostas de cortes de tarifas agrícolas em mercados importantes. A Índia, por exemplo, escapa de qualquer corte nas atuais alíquotas aplicadas. Mesmo no caso da proposta mais ambiciosa dos próprios Estados Unidos, só 25% das linhas tarifárias indianas seriam reduzidas, longe de satisfazer os exportadores americanos. Em contrapartida, as simulações mostram que quase todas as linhas tarifárias agrícolas dos EUA, UE e Japão teriam cortes, atingindo mais da metade das importações.

No secretariado da OMC, a orientação é evitar falar de "acordo ligth". Lamy insiste que, com base no que está na mesa, as maiores tarifas agrícolas poderão ter corte entre 60% e 70%, o dobro do resultado da Rodada Uruguai (1986-1995). Além disso, se não houver compromissos de futuros cortes nos subsídios, os Estados Unidos poderão gastar por ano mais US$ 5 bilhões pela "caixa amarela" (os subsídios que mais distorcem o comércio pois funcionam como uma garantia de preço que estimula excesso de produção); a União Européia, US$ 25 bilhões, o Japão também US$ 25 bilhões e o Canadá, US$ 2 bilhões. Tudo isso sem violar as regras existentes da OMC, já que eles têm autorização para gastar acima dos níveis atuais.

O agronegócio brasileiro parece na mesma linha. O Ministério da Agricultura quer explicar aos outros membros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) que o resultado da rodada será uma composição de vários elementos e para cada produto o efeito será variado: o fim de subsídios à exportação no comércio agrícola internacional vai ajudar o setor de lácteos, que começa a exportar. Já o corte de subsídios internos americanos é importante para a soja, produto que já têm tarifa baixa em todo o mundo. Em contrapartida, corte de tarifa é crucial para as exportações de carne, açúcar, tabaco, suco de laranja.

Ou seja, o Brasil vai ganhar de qualquer jeito, na medida em que quem dá subsídios vai cortá-los. Mas mesmo com um acordo final, será difícil determinar o impacto para o setor. Técnicos exemplificam que para culturas de exportação de milho e soja, o preço do petróleo é mais importante do que a negociação na OMC. Nos EUA, está sendo reduzida a produção de soja e aumentada a de milho para produzir etanol. No Brasil, a plantação de cana-de-açúcar avança sobre outras culturas. Outro exemplo é a gripe aviária. Desestimula o consumo de carne de frango, mas aumenta a venda de carne bovina.

A experiência mostra, em todo caso, que na OMC acordos só saem em meio a crises e no último momento.