Título: Demanda pode tornar uso do álcool viável apenas na safra
Autor: Marli Olmos
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2006, Brasil, p. A4

O comportamento dos preços do álcool este ano - que apenas na Região Sudeste já voltou a ser um combustível vantajoso em relação à gasolina - começou a indicar para o consumidor que escolheu essa tecnologia que a vantagem de usar um produto mais barato estará restrita a um período curto de meses ao longo do ano. A prevalecer o quadro de hoje, os mais de 1,5 milhão de proprietários de carros com motor bicombustível do país abastecerão o tanque com álcool nos meses da safra da cana-de-açúcar da região onde cada um vive e com gasolina na entressafra.

Com isso, volta o debate em torno da necessidade ou não de um estoque regulador. A proposta agora vem do próprio setor automotivo, que antes não a achava necessária. Exatos três anos depois do lançamento da tecnologia que a indústria chama de "flex" é perceptível que excluindo a Região Sudeste - principalmente São Paulo, onde circula a maior parte da frota - os tanques dos carros bicombustíveis estão recebendo apenas gasolina. Como o carro bicombustível consome mais álcool para percorrer o mesmo trajeto que faria com gasolina, nas contas da indústria automobilística só vale a pena usar o derivado da cana-de-açúcar quando o preço do litro desse combustível não ultrapassar 70% do valor do litro da gasolina. Em alguns Estados a vantagem do álcool ainda não apareceu.

O presidente da Associação Brasileira da Engenharia Automotiva (AEA), Marcos Saltini, mora em São Paulo, Estado que oferece a maior vantagem para o uso do álcool. Agora é período de safra na região. Mas assim como tantos outros proprietários de carros com motor bicombustível, Saltini optou pela gasolina nos primeiros quatro meses do ano, período da entressafra, quando os preços do álcool dispararam.

Para o presidente da AEA, a situação serve para comprovar a grande vantagem do carro com motor flexível. "Quem define o combustível desta vez é o consumidor", afirma. "Ele está livre", completa o engenheiro. A constatação pode não provocar o mesmo entusiasmo em um consumidor menos técnico. Principalmente quem comprou o carro bicombustível pensando em levar vantagem no preço do combustível.

A situação começa a preocupar a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). O presidente da entidade, Rogélio Golfarb, sustenta que é mais do que urgente a criação de um estoque regulador. Principalmente, argumenta, porque a tendência é de a demanda continuar aumentando, o que criará ainda mais incertezas. Ele lembra que hoje o álcool representa 20% do combustível usado nos carros que circulam pelo país. Mas a tendência é de crescimento constante.

Em maio, 76% dos automóveis e comerciais leves vendidos no mercado brasileiro saíram com motor bicombustível. A indústria estima que o percentual chegará próximo de 90% até o fim do ano, o que equivale dizer que até dezembro serão mais de 2 milhões de carros rodando com motor flexível. Apenas Honda e Toyota ainda não vendem carros com motor bicombustível. Mas a Honda já anunciou que vai lançar a tecnologia nos próximos meses. A Volkswagen informou esta semana que 100% dos carros que vende no país é bicombustível. O último carro da marca que só aceitava um dos dois combustíveis, o Santana, deixou de ser fabricado no dia 31 de maio.

"Você não pode ter um sistema que ora é viável e ora é inviável", diz Golfarb. "Imagine dizer para alguém que na sua casa ora vai ter que usar gás, ora energia elétrica."

De uma produção de 17 bilhões de litros de álcool estimada para este ano o mercado interno consumirá 14,8 bilhões. O resto será exportado. Goldfarb defende a criação de um estoque regulador com vistas, inclusive, ao mercado externo. "Não podemos ficar à mercê da eventualidade de um pedido de exportação extra, pois isso faria o preço do álcool disparar", afirma.

O diretor-técnico da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), Antonio de Pádua Rodrigues, discorda. Para ele, o estoque regulador é o consumidor quem faz ao deixar de comprar o produto quando o preço sobe. O executivo confirma, porém, que a ampliação da capacidade de produção, que virá com a série de investimentos em novas usinas, só vai aparecer entre 2010 e 2011.

Para ele, o que falta é uma definição clara da política energética. "É necessário estabelecer qual será a participação do álcool e da gasolina", destaca. "Mas acredito que na maior parte do tempo o álcool será mais vantajoso", diz. "É preciso perceber, além de tudo, a realidade dos preços do petróleo e ainda os programas de redução de poluentes", acrescenta.

Os representantes da indústria automobilística concordam, porém, que o Brasil está numa posição confortável em relação ao resto do mundo no que se refere a energia alternativa. "O grande desafio mundial é obter um combustível alternativo ao petróleo, qualquer que seja ele. E o bicombustível é a segunda oportunidade que o Brasil tem", afirma Saltini, ao traçar um contraponto com os tempos do Proálcool.

Na indústria, é consenso que o sucesso do programa do bicombustível, lançado em 2003, está consagrado e tem servido de exemplo para outros países. As visitas de técnicos, autoridades e jornalistas estrangeiros ao país para conhecer a tecnologia do sistema bicombustível têm sido cada vez mais freqüentes. E a imprensa dos Estados Unidos tem citado constantemente o exemplo brasileiro de uso de energia alternativa.