Título: O MST no contexto das eleições presidenciais
Autor: Marcello Averbug
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2006, Opinião, p. A10

Em meados do século XX, a questão agrária empolgava o debate político, econômico e social brasileiro. E era compreensível que assim fosse: abrigando em 1950 e 1960, respectivamente, 63,8% e 54,9% da população, a área rural era palco dos maiores índices nacionais de pobreza e de desperdício dos fatores de produção, terra e mão-de-obra.

Se a reforma agrária tivesse ocorrido naquela ocasião, de maneira competente, a história do país teria sido bem diferente e, acredito, para melhor. O próprio processo de industrialização transcorreria de forma menos desgastante e a iniqüidade social seria mais branda. Estou convencido, até mesmo, de que os recursos absorvidos pela construção de Brasília teriam gerado maior impacto positivo sobre o desenvolvimento nacional, caso houvessem sido direcionados ao financiamento dessa reforma estrutural e projetos de modernização da atividade agropecuária.

Mas a reforma agrária não aconteceu. Em seu lugar, ocorreu um longo, sofrido e desequilibrado processo evolutivo do cenário rural que culminou, na década de 1990, com uma verdadeira revolução capitalista no campo. Hoje, embora os contrastes sociais não tenham desaparecido, vários segmentos do setor primário exibem elevados níveis de competitividade. Por exemplo: projetos agrícolas de êxito acontecem no Nordeste; São Paulo produz o açúcar mais barato do mundo; savanas do Centro-Oeste propiciam prodigioso crescimento ao cultivo da soja; modernos pólos hortifrutigrangeiros espalham-se pelo país.

Por outro lado, a população rural representa apenas em torno de 18% da total e, em números absolutos, é 18,5% inferior à registrada em 1960. A temática da posse da terra deixou de ser o ponto crucial do desenvolvimento econômico e social do setor agropecuário. Os maiores bolsões de pobreza transferiram-se para as cidades, onde agora explodem as tensões sociais mais agudas.

Sob este cenário, torna-se inteiramente injustificável a repercussão obtida pelo Movimento Sem Terra (MST), visto que o teor de suas reivindicações peca pela ausência de oportunidade. Independente dos aspectos policialescos de algumas atitudes do MST, sua substância sócio-econômica é débil em contraste com a autenticidade de outras mobilizações verificadas na história brasileira, tais como as Ligas Camponesas, de Francisco Julião.

Encastelado no dogma de que a solução para a pobreza rural encontra-se em dar terra a quem não tem, o MST insiste no slogan "um pé de chão para cada peão". Além de inatingível, esse propósito é fútil. A vulnerabilidade do peão não decorre necessariamente da falta de terra própria, mas sim da falta de uma fonte segura de rendimento que lhe garanta padrão digno de moradia, saúde, alimentação, educação e de qualidade de vida em geral. Esta fonte tanto pode ser a sua propriedade, quanto o emprego regulamentado e bem remunerado em estabelecimento de terceiros.

Problema do peão não é a falta de terra, mas a ausência de uma fonte segura de rendimento que lhe garanta vida digna O setor agropecuário dispõe de potencial para proporcionar aos seus trabalhadores um nível de salário substancialmente superior à média atual. No entanto, a batalha para o alcance desse potencial vem sendo ofuscada pela movimentação concentrada sobre a questão da posse. Se todo camponês possuir seu pedaço de terra, quem trabalhará como assalariado nas propriedades maiores? Ou será que alguém está sonhando transformar a paisagem agrária brasileira em um vasto conjunto de minifúndios? O esforço em maximizar o assentamento daquelas famílias que não encontram meios adequados de sustento e desejam seu pé de chão deve ser mantido, mas não como solução universal.

Achar que todo trabalhador do campo deva ser proprietário rural equivale a considerar todo habitante de área urbana no direito de possuir empresa própria. Isto é: uma fábrica para cada operário; um banco para cada bancário; uma loja para cada comerciário e assim por diante. A posse de estabelecimento empresarial não é a origem exclusiva da iniqüidade social brasileira. Na verdade, o fundamental para o país seria instituir o "Movimento dos Sem Renda", que reclamasse políticas redistributivistas globais. Mesmo porque, a maior incidência de iniqüidade social ocorre nas cidades, não no campo.

Embora se declare socialista, o MST transmite um discurso capitalista: deseja transformar todo camponês em proprietário, isto é, em empresário. Se seus líderes fossem realmente de esquerda, estariam pensando em coletivização do uso do solo rural.

Opor-se ao MST apenas por considerá-lo baderneiro constitui uma forma equivocada de interpretar o fenômeno. O fundamental é apontar o teor anacrônico de sua finalidade. No entanto, a maioria dos políticos, tanto governistas quanto de oposição, limitam suas críticas apenas aos atos delinqüentes praticados pelo MST. Poucas figuras públicas o enfrentam mediante o debate conceitual. Quando o fazem, em geral são membros da extrema-direita, desprovidos de isenção de análise e tão "dinossauros" quanto a liderança do movimento.

Às vésperas da campanha sucessória presidencial, qualquer ocasião deve ser aproveitada para provocar este assunto, visto que, em decorrência de conveniências múltiplas, os candidatos preferem driblá-lo. Devido a essa inibição, a tendência natural é perder a oportunidade, oferecida pela eleição, de reavaliar a postura da sociedade e do poder público ante o Movimento Sem Terra.

Nenhum dos presidenciáveis demonstra coragem de questionar o ideário do MST. No caso do candidato Lula, os fatos demonstram que, quando ocorrem diabruras, tais como invasão de fazendas produtivas e edifícios públicos, seu governo limita-se a dar um puxão de orelha nos dirigentes do movimento quando, de fato, deveria cortar de vez suas asas.

O perigo dessa omissão consiste em transformar o MST em um foco endêmico de intranqüilidade, afetando o ritmo de modernização da atividade agropecuária e o avanço das conquistas do trabalhador rural.

Marcello Averbug é ex-chefe do Departamento de Planejamento do BNDES e ex-economista do BID, é consultor em Washington