Título: Longe da meta, Lula gasta mais
Autor: Mauro Zanatta
Fonte: Valor Econômico, 12/06/2006, Especial, p. A12

Usado como pretexto pelo Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) para invadir e depredar a Câmara dos Deputados, o programa de reforma agrária continua lento, pouco abrangente e incapaz de resolver um passivo de 462,2 mil famílias relegadas a condições precárias pelas gestões federais desde 1994.

Descontínua e intermitente, a evolução dos assentamentos em 2005 revela que quase metade dos assentamentos continua a ser feita na Amazônia, longe da infra-estrutura. Mas isso não significa menos gastos do Tesouro. Somente em obtenção de terras, o país gastou R$ 1,9 bilhão no ano passado - em 2004, haviam sido gastos R$ 1,13 bilhão.

Os dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra revelam que apenas 31% das famílias contabilizadas nos projetos em execução desde 1994 estão em assentamentos em consolidação ou já consolidados. Procurado, o ministério não se pronunciou. Somente 22,3% dos 7.381 projetos em execução estão nesta mesma condição, aponta balanço do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Embora "enfraquecida", a reforma agrária tem abocanhado cada vez mais recursos da União. Dados do Tesouro mostram que as despesas com o programa cresceram 12% em termos reais desde 2000, quando os dados passaram a ser mais detalhados. Os gastos subiram de R$ 1,4 bilhão, em 2000, para R$ 1,6 bilhão no ano passado. Apenas nos três primeiros anos do governo Lula, foram gastos R$ 4,5 bilhões no programa. De 2000 a 2005, as despesas da União com a função Organização Agrária cresceram 86%, chegando a R$ 3,6 bilhões no ano passado. Nos últimos seis anos, as despesas totais somaram R$ 9,3 bilhões.

"O governo ainda não encontrou a estratégia de estruturação produtiva dos assentamentos. Os desembolsos não saem no tempo e na hora certa. Muitas áreas são inadequadas para a agricultura e só recentemente se fez análise ambiental", resume a socióloga Brancolina Ferreira, especialista do Ipea. "Além disso, a terceirização da assistência técnica e do desenvolvimento dos projetos prejudicou a efetividade do gasto. Há muitas famílias acampadas sem atendimento". Segundo o MST, 220 mil famílias esperam acampadas.

Os gastos com investimentos aumentaram 32% entre 2001 e 2005. Se analisados em detalhe, os dados do Tesouro revelam, porém, redução no crédito focado em assentados a partir de 2003. O desempenho do programa de fortalecimento da agricultura familiar (Pronaf) mostra que os gastos com assentados caíram 54% entre 2003 e 2005.

Muito além dos gastos, entretanto, está o modelo adotado. Dos 13,2 milhões de hectares obtidos para o programa em 2005, 45% foram de áreas reconhecidas. Apenas 6,3% foram áreas desapropriadas. "Passamos da 'clonagem' do governo FHC, que incluía assentamentos criados pelos militares, à 'autofagia' do governo Lula, que não tem incorporado terras novas ao processo nem modificado a estrutura fundiária", critica o geógrafo Bernardo Mançano, professor da Unesp em Presidente Prudente. "São formas diferentes de enganar o público, porque a reforma só existe no plano das idéias". "20% deixam os assentamentos. Se tiver infra-estrutura, a desistência cai para 2%", diz Mançano.

Uma comparação entre os dois mandatos de FHC e a gestão Lula indica que o atual governo pode ultrapassar o número oficial de assentados. No primeiro mandato, FHC assentou 287,9 mil famílias. No segundo, 304,2 mil. Em três anos, Lula assentou 245,1 mil famílias. Se atingir metade da meta deste ano de 140 mil famílias, a atual gestão ultrapassará os números desmembrados dos oito anos de FHC.

"Mas seria preciso examinar cada desapropriação e ver se, de fato, existem familias efetivamente assentadas. Os dois governos tendem a utilizar áreas desapropriadas, mas ainda não liberadas para assentamentos para 'engordar' os números", diz o sociólogo Zander Navarro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Hoje na Universidade Sussex (Inglaterra), Navarro lembra que a reforma agrária de FHC começou, de fato, em meados de 1996, quando "engrenou" o MDA.

A reforma de FHC foi beneficiada pelo desânimo dos produtores com a baixa rentabilidade das atividades agrícolas e pelas privatizações, que permitiam o uso de "moedas podres", como os Títulos da Dívida Agrária para pagar as desapropriações. "Agora, há a estreita colaboração entre MST e governo. Assim, foi possível convergir ações de mobilização com desapropriações", diz.

Segundo ele, as invasões de terras já não causam espanto nem reação imediata da Justiça. "Se alguma propriedade for invadida, está irremediavelmente condenada", afirma. A Justiça, afirma, tornou-se mais "flexível, tolerante" e passou a "aceitar" as ações. "Foi uma das maiores vitórias políticas do MST em sua existência".