Título: Aperto no crédito afeta empresas na China
Autor: Wenxin ,Fan
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2011, Especial, p. A12

Eles querem tomar uma das farmácias da rede que Zhong construiu tomando dinheiro emprestado junto a emprestadores informais. Em vez disso, ele fez uma proposta de retribuição tradicional nessa cidade do leste da China, conhecida pelos agiotas que às vezes tratam com violência os maus pagadores. "Se vocês preferirem, podem cortar um de meus dedos", disse Zhong, 42.

Abrir mão de uma farmácia teria tornado impossível pagar outros 130 credores, afirma o próprio Zhong. Ele tomou emprestados 30 milhões de yuans (US$ 4,7 milhões) a taxas de juros que chegam a 7% ao mês, para ampliar seu negócio. Muitos dos emprestadores são vizinhos idosos que hipotecaram suas casas.

Pelo menos 90 empresários em situação parecidas com a de Zhong deixaram a cidade desde abril, sendo que dois deles se suicidaram, segundo Zhou Dewen, presidente de uma pequena associação empresarial de Wenzhou. Um deles foi o sapateiro Shen Kuizheng, que saltou para a morte de seu apartamento no 22º andar de um prédio em 21 de setembro.

As 400 mil empresas de Wenzhou estão enfrentando dificuldades financeiras por causa da alta dos custos, a disparada das taxas de juros no mercado negro e um súbito aperto de crédito, afirma Zhou. Problemas parecidos estão ocorrendo em toda a China porque as empresas privadas no país dependem do mercado negro, e não dos bancos, para operar, acrescenta ele.

A situação difícil dessas pessoas levou o primeiro-ministro da China, Wen Jiabao, a visitar a cidade, localizada a 368 km ao sul de Xangai, em 4 de outubro, quando ele prometeu ajudar as empresas com problemas. Desde então, dirigentes nacionais e locais anunciaram medidas para ajudar as pequenas empresas, incluindo a oferta de acesso mais fácil a empréstimos bancários, um teto às taxas de juros dos empréstimos concedidos por particulares em Wenzhou e medidas enérgicas contra os agiotas que usam a violência.

Mas, segundo Zhong, essas medidas não estão sendo de muita ajuda para ele. "Estou sob uma pressão enorme", afirma ele em um depósito onde os estoques de medicamentos estão diminuindo rapidamente. "Não temos dinheiro suficiente."

O colapso súbito das redes informais de empréstimos revela a fragilidade do sistema financeiro não regulamentado da China quando o crédito sofre um aperto e os credores perdem a confiança, diz Tao Dong, um economista do Crédit Suisse Group em Hong Kong. A oferta de dinheiro encolheu depois que o governo restringiu os empréstimos para tentar conter a inflação, que está perto do patamar mais alto em três anos.

"Esse é um grande problema em todo o país", diz Tao, que estima os empréstimos privados em 4 trilhões de yuan ou 8% dos empréstimos totais na China. "Wenzhou é apenas a ponta do iceberg."

A maior parte dos empréstimos informais vem sendo injetada nos incorporadores imobiliários que estão conduzindo o boom imobiliário na China, que dá sinais de desaceleração. Em Wenzhou, isso está aumentando os preços das moradias, que estão entre as mais caras do país.

A imprensa chinesa vem informando sobre dificuldades parecidas na próspera cidade mineradora de Ordos, no norte da China, e no coração industrial de Guangdong, no sul. Os riscos para a economia chinesa como um todo incluem um potencial congelamento de crédito, que seria desencadeado pela crescente falta de confiança entre os emprestadores informais, segundo consta em um relatório divulgado em 11 de outubro por Wang Tao, uma economista do UBS em Hong Kong. Isso poderá provocar a disseminação de falências, diz ela.

Wenzhou - uma cidade de 9 milhões de habitantes cujas empresas privadas vão de fábricas de sapatos de fundo de quintal a fábricas modernas nos novos distritos industriais - produz 90% dos óculos fabricados na China e dos isqueiros exportados. A riqueza da cidade está refletida nos Porsches e Land Rovers que circulam pelas ruas e no surgimento de shopping centers no centro da cidade que vendem roupas Hugo Boss e relógios Omega.

Ela foi a primeira cidade a abraçar com força a iniciativa privada no começo dos anos 1980, sob as reformas econômicas propostas pelo então líder Deng Xiaoping, chegando ao ponto de desenvolver as mais avançadas redes privadas de empréstimos do país. As empresas de Wenzhou usaram as redes familiares e da cidade porque era difícil obter empréstimos bancários.

O governo local ajudou a estimular isso ao adotar uma postura leniente em relação aos empréstimos privados, afirma Huang Yasheng, professor associado da Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Um aperto de crédito anterior ocorrido em Wenzhou há 25 anos afetou 200 mil financiadores, resultando em 523 sequestros mais de 30 mortes, segundo um site do governo local na internet.

Com o ruído produzido por uma fábrica de calçados próxima entrando pela janela de seu depósito, em um distrito industrial de Wenzhou, Zhong conta como ele precisou do dinheiro de agiotas para transformar a Blue Sky Pharmacy em uma rede de 27 lojas em apenas três anos.

Médico de um vilarejo, Zhong tomou dinheiro emprestado para pagar as despesas que teve no tratamento de sua mulher, que morreu de hepatite aos 23 anos. Após um novo casamento, com uma mulher que tem suas próprias dívidas na condução de uma pequena financeira, ele abriu uma farmácia em Wenzhou para tentar quitar a dívida combinada do casal.

Os dois contraíram mais dívidas para financiar a expansão do negócio, conta Zhong. Ele não conseguiu dinheiro dos bancos, de modo que primeiro tomou dinheiro emprestado de vizinhos das redondezas.

As pequenas e médias empresas respondem por 80% dos empregos na China, segundo o Ministério da Indústria do país. Mesmo assim, elas são em grande parte incapazes de conseguir empréstimos junto aos bancos, que preferem garantias ao fluxo de caixa, segundo diz um relatório divulgado em 17 de outubro pelo banco de investimentos australiano Macquarie Group.

Ao recorrer à rede de sua própria cidade, Zhong se transformou no elo final de uma longa corrente de dívidas. "Num empréstimo comum, o Banco A empresta para um cliente e observa o fluxo de caixa", diz Tao, o economista do Crédit Suisse. "Num empréstimo informal, vai-se da A a B e a C, chegando até XYZ. Uma vez além do C, você não tem mais ideia de para onde o dinheiro foi."

No caso de Zhong, a trilha da dívida pode ser traçada para fileiras de prédios de cimento de quatro andares não muito longe do aeroporto de Wenzhou, a 40 minutos de carro do centro da cidade.

Os moradores transformaram o empréstimo de dinheiro em uma indústria artesanal, segundo se constata de entrevistas com seis deles. Eles construíram uma trama de crédito interligado, sempre tomando emprestado de bancos e outros financiadores privados para arbitrar taxas de juros. Contraindo empréstimos bancários a 1% ao mês, muitos emprestam a 2% ou mais ao mês. Eles embolsam a diferença para complementar as rendas magras obtidas com biscates.

Sentada em um pequeno banco, a grisalha Jin Xiaoyu enche uma caixa de madeira com as braçadeiras elétricas que ela faz para ganhar 10 yuan por dia. Seu olho esquerdo apresenta a cor leitosa da catarata e ela diz que tem dificuldade para enxergar.

Ela emprestou 50 mil yuans e cobrou um juro mensal de 1.000 yuans, segundo conta. "Tenho medo de não conseguir o dinheiro de volta", afirma Jin. "Espero que o governo nos ajude."

Alguns usaram suas casas como garantia. Entre eles está Wu Suihua, que contraiu um empréstimo oferecendo sua casa de cinco pisos como garantia. "Não temos muita renda", diz ela. Sua casa fica ao lado de uma loja da Blue Sky Pharmacy aberta há poucos meses e que vende ginseng e outras ervas medicinais chinesas, além de medicamentos ocidentais.

O uso das moradias como garantia dos empréstimos significa que os problemas de Zhong poderão atingir os bancos. De um terço a metade do dinheiro usado em empréstimos privados tem origem nos bancos, segundo explica Lu Ting, economista da corretora de valores do Bank of America Corp.

O aperto do fluxo de dinheiro para as empresas continua elevando o risco para os empréstimos bancários, segundo um comunicado do Departamento Financeiro de Wenzhou passado para a Bloomberg em 21 de outubro. A atual taxa de empréstimos vencidos e não quitados em Wenzhou pode ser controlada e está abaixo da média nacional, afirma o comunicado.

A rede de empréstimos informais funcionou até o terceiro trimestre de 2010, quando os vizinhos de Zhong passaram a não conseguir mais emprestar junto aos bancos, depois que o governo decidiu conter o crédito, diz ele.

As empresas de Wenzhou já enfrentavam dificuldades por causa da queda das exportações para a Europa e os Estados Unidos e o aumento dos custos trabalhistas, segundo explica Chen Yuyu, professor associado da Guanghua School of Management da Universidade de Pequim. O salário mínimo da província de Zhejiang, onde fica Wenzhou, subiu 19% em 2011 em relação a 2010, segundo o banco britânico Standard Chartered.

Zhong precisava de dinheiro para continuar pagando seus fornecedores, os aluguéis e os funcionários. Certo dia, ao ler um jornal local ele viu um anúncio oferecendo empréstimos sem garantias. Ele telefonou para o número anunciado e conseguiu tomar 600 mil yuans por um mês, do que Zhong chama de "gaolidai", um termo chinês para agiota. Ele contraiu um novo empréstimo e começou a pagar juros e rolar o principal, diz ele. As taxas subiram para 7% ao mês.

Os juros no mercado negro dobraram neste ano, superando em muito o retorno das companhias de Wenzhou, que normalmente têm margens de lucro muito pequenas, afirma Ren Xianfang, um economista da IHS Global Insight em Pequim.

Os emprestadores informais exigem juros anuais de 20% a 40%, ou mais, superando em muito a taxa oficial que é de 6,56% ao ano, segundo diz a economista Wang do UBS. A taxa subiu, enquanto os novos empréstimos bancários caíram na China, para 470 bilhões de yuans em setembro, o menor nível em 21 meses.

Zhong achou que seus problemas seriam resolvidos em agosto, depois que dois amigos concordaram em ser fiadores e ele finalmente conseguiu um empréstimo de uma agência local do Industrial Bank, cuja sede fica em Fuzhou. Foram 15 milhões de yuans a 1% ao mês, divididos em duas parcelas. Um dos fiadores ofereceu seu apartamento no centro da cidade como garantia, em troca de 60 mil yuans por mês de Zhong, diz ele.

Mas havia um problema. Àquela altura Zhong devia ao "gaolidai" 4 milhões de yuans. A primeira parcela que ele recebeu do banco foi para pagar esta dívida. Em 20 de outubro, procurado por telefone, o agiota disse que não está mais no negócio e recusou-se a fazer mais comentários. A agência do Industrial Bank em Wenzhou não quis comentar o caso de Zhong.

Quando comentários sobre os problemas de Zhong se espalharam, credores furiosos correram para seu depósito exigindo seu dinheiro de volta. Zhong diz que se esforçou par acalmá-los enquanto eles atiravam copos no chão e se apoderavam de caixas de medicamentos.

Em setembro, o sinal de alerta se espalhou por toda Wenzhou depois que jornais publicaram que empresários estavam fugindo ou se suicidando por não terem como pagar suas dívidas.

"Todos estavam nervosos e inseguros", diz Zhong, sapatos de couro e sem meias, perto de uma sala de reuniões escura e com um busto de Mao Tsé-Tung. "Havia pânico em toda parte. A Blue Sky agora é famosa por suas dívidas. Ninguém vai me emprestar dinheiro."

Os problemas de Zhong são os de muitos outros donos de empresas. Poucas semanas atrás, um grupo de aproximadamente 20 empresários se reuniu em um salão revestido de mármore para um banquete com lagosta e filé no Hai Yan Lou, um restaurante cantonês que fica em frente à sede da autoridade reguladora do setor bancário da China.

O clima era ruim. Eles falaram sobre o suicídio recente do dono de uma fábrica de calçados porque ele não conseguiu pagar suas dívidas e do desaparecimento de outro que devia dinheiro a eles, segundo Yan Xi, a dona de uma companhia que produz corantes para calçados e tecidos, que participou da reunião. Cada homem presente bebeu uma garrada de Moutai, uma marca cara de licor chinês feito a partir do sorgo, por temer nunca mais poder se dar a esse luxo novamente.

Em outubro, a deterioração da situação de Wenzhou levou à visita do primeiro-ministro chinês, que desencadeou uma série de iniciativas para ajudar as empresas privadas. "Após a visita do premiê Wen, enviei mensagens de texto para amigos de todas as partes do mundo, informando que Wenzhou será resgatada", disse Yan.

A autoridade reguladora do setor bancário da China disse posteriormente que permitirá aos bancos vender bônus para levantar dinheiro para a concessão de empréstimos a pequenas empresas, e que vai tolerar juros maiores sobre empréstimos vencidos e não pagos, entre outras medidas para encorajar os empréstimos bancários.

Em Wenzhou, o governo local estabeleceu um fundo emergencial de 1 bilhão de yuans. Sua campanha contra os agiotas levou em 27 de outubro à prisão de um casal suspeito de levantar ilegalmente 1,3 bilhão de yuan, segundo publicou o jornal "China Daily".

Poucos empresários que fugiram de Wenzhou retornaram desde a visita do premiê Wen, segundo Zhou, da associação das pequenas empresas. Outros foram caçados e presos, segundo a agência de notícias oficial Xinhua.

Analistas estão tentando averiguar a eficiência das medidas e até onde os problemas de Wenzhou vão se espalhar pela China. A cidade é hoje a maior fonte de capital privado do país, manobrando cerca de 800 bilhões de yuan, equivalentes a 2% do PIB chinês, segundo Ren da IHS Global. O dinheiro de Wenzhou é investido em tudo, do setor imobiliário de Dubai a minas de carvão da província de Shanxi, no noroeste da China.

Após uma viagem de pesquisa a Wenzhou, Lu Ting, do Bank of America, disse em um relatório divulgado em 25 de outubro, que as chances de um problema nacional de liquidez são baixas.

Outros veem Wenzhou como sintomática de problemas maiores, como uma dependência excessiva dos investimentos para o crescimento da economia que canalizam dinheiro para as companhias estatais, diz Michael Pettis, estrategista da Guosen Securities em Pequim. "É possível resolver o problema de Wenzhou, mas o que está acontecendo é simplesmente a transferência do problema para outro lugar."

O farmacêutico Zhong diz que enviou um relatório para o governo local na esperança de se beneficiar do plano de socorro. Ele passa seus dias e noites no depósito de seu sonho que se desintegra. Ele vendeu sua BMW e vive em um dormitório da companhia. Sua mulher dorme em uma de suas lojas e eles matricularam sua filha em um internato. Avisado sobre o problema pela mulher de Zhong, um credor mais compreensivo pediu perdão para ele, afirmando que o farmacêutico lhe deve ainda mais dinheiro. A estratégia deu certo, segundo Zhong. Sua proposta ao agiota de trocar a dívida por um dedo foi esquecida.

Ele diz que provavelmente vai perder seu negócio. Está negociando sua transferência para os 130 credores. Eles o manterão como um administrador assalariado. "Minha esposa e eu provavelmente não ficaremos com nada", diz ele.