Título: Ex-presidentes e a governabilidade
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2004, Política, p. A6

Atribui-se ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), a máxima segundo a qual, na política brasileira, não há porta de saída, apenas de entrada. Que o diga o autor do aforismo: ele próprio, depois de ter sido tudo na política, sobretudo, presidente da República, resiste em se aposentar. Enquanto não faz isso, Sarney exerce com sofreguidão sua influência política, que, sabe-se, não é pequena. Durante sete meses deste ano, o senador, eleito pelo Amapá porque seu Estado natal, o Maranhão, sinalizou que não lhe daria mais um mandato, alimentou a tese de que a sua reeleição à presidência do Senado seria boa para a governabilidade. Talvez, fosse mesmo: tendo deixado a Presidência da República há 14 anos, Sarney é mais poderoso hoje, diz-se em Brasília, do que no período em que presidiu a nação. A reeleição só seria possível se deputados e senadores concordassem em aprovar emenda à Constituição. Na primeira votação, o substitutivo da emenda foi rejeitado, mas ainda havia a possibilidade de se votar o texto original e, assim, garantir-se mais um mandato de dois anos para Sarney no comando do Senado. Por causa do impasse gerado pela emenda, nada importante foi votado no Congresso entre maio e novembro. Não foi a primeira vez que Sarney brigou para esticar seu mandato. Lembre-se que, na Presidência da República, ele liderou ruidosa campanha para ficar mais um ano no poder. O exercício de poder de José Sarney fora da Presidência da República é um problema institucional da política brasileira. No fundo, mostra como o país ainda não aprendeu a conviver com ex-presidentes. É também mais uma prova da fragilidade dos partidos, que, aparentemente, não podem prescindir da liderança de políticos importantes, como os ex-presidentes. Veja-se o caso de Fernando Henrique Cardoso. Tendo sido o protagonista da mais civilizada transição de poder já vista neste país, o ex-presidente comportou-se como um lorde inglês nos primeiros dois anos fora do poder. Recentemente, no entanto, ao perceber que a oposição, liderada por seu partido, não está morta, ele voltou à cena política com fortes críticas ao governo Lula. Ainda não se sabe qual é o verdadeiro objetivo de FHC: colocar-se, desde já, como possível desafiante de Lula em 2006 ou como principal condutor do processo que escolherá o candidato da oposição daqui a dois anos. Não importa. Seja qual for a intenção, sua ação é incômoda. Ela antecipa, em dois anos, a sucessão presidencial. Por essa razão, acirra os ânimos e dificulta o diálogo entre o governo e a oposição. Em última instância, as declarações de FHC afetam a governabilidade. Observe-se que o açodamento do prefeito reeleito do Rio de Janeiro, Cesar Maia (PFL), em se lançar agora candidato à Presidência em 2006 não causou tamanho barulho na política nacional como as críticas de FHC. Pessoalmente, Fernando Henrique tem razões de sobra para bater em Lula, afinal, durante seus dois mandatos, o atual presidente não fez outra coisa a não ser atazanar a sua vida.

No Brasil, presidentes não se aposentam

Há maneiras mais civilizadas de se lidar com ex-presidentes. Nos Estados Unidos, a Presidência é o derradeiro degrau na vida de um político. Concluído o mandato, a carreira política chega ao fim. Tendo exercido o cargo máximo num regime democrático, acostumado há mais de 200 anos com a alternância de poder, o ex-presidente não almeja politicamente mais nada, a não ser zelar pela própria biografia. Para os americanos, ex-presidentes são instituições. Merecem respeito. Têm direito a salário vitalício, segurança pessoal e orçamento. Pouco depois de deixarem o cargo, eles apresentam ao novo presidente uma planilha, especificando os gastos que terão com aluguel de escritório e pagamento de pessoal. No exercício da ex-Presidência, cada um escolhe o seu caminho. Alguns não fazem nada. Simplesmente, retiram-se de cena. Outros se dedicam a causas. Jimmy Carter criou um centro para promover direitos humanos e monitorar, como observador independente, eleições em jovens democracias. Bill Clinton ganha dinheiro dando palestras e pregando seu legado. George W. Bush faz uma gestão na Presidência americana que pode ser caracterizada como anti-Clinton. Nem por isso, o ex-presidente o ataca em entrevistas à imprensa. Durante a recente campanha presidencial, Clinton ajudou discretamente John Kerry, o candidato de seu partido. Há algumas semanas, Clinton inaugurou a sua biblioteca. O evento foi prestigiado por Bush e seu pai, um ex-presidente. Chamou a atenção a fotografia publicada em centenas de jornais pelo mundo, mostrando Clinton lado-a-lado com Bush, Bush pai e Carter. No Brasil, ex-presidentes são uma dor-de-cabeça para os presidentes. Itamar Franco é a maior delas. No primeiro mandato de FHC, foi premiado com a chefia da missão do Brasil na OEA e com a embaixada em Portugal. Nunca deixando de criticar o presidente, voltou ao país e candidatou-se ao governo de Minas Gerais. Nos primeiros dez dias de mandato, avisou à banca que não pagaria a dívida externa, precipitando, no mercado, um ataque especulativo ao real. Já no governo Lula, voltou a ganhar uma embaixada - desta vez, a de Roma, que ameaça deixar em fevereiro. O mimo não lhe bastou: do exterior, ele danou a falar mal dos outros. Dessa vez, do governo Lula. É verdade que Itamar não é levado muito a sério. Como Fernando Collor também não o é, mas o fato é que, enquanto prevalecer a máxima de José Sarney, ex-presidentes serão sempre candidatos a alguma coisa. Dependendo da estatura de cada um, terão influência, inclusive, para desestabilizar governos. No rastro da campanha do próprio Sarney à reeleição no Senado, sempre pontuou a tese de que, sem ele na presidência da Casa, o governo Lula correria riscos. Trata-se de algo que, para o Palácio do Planalto, funciona assim: "Melhor tê-lo do nosso lado do que contra".