Título: O outro lado da luta contra a pirataria
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2006, Brasil, p. A2

Quando se fala em defesa de marcas e patentes, país pobre ou emergente sabe que estará na fila dos acusados, dos alvos tradicionais das campanhas contra pirataria dos chamados direitos de propriedade intelectual. Liderados pela Índia, porém, os governos do Brasil, Paquistão, Peru, Tailândia e Tanzânia partiram para a ofensiva, na semana passada, na Organização Mundial do Comércio (OMC). Sem muito alarde, oficializaram uma proposta para mudar o atual acordo de defesa de propriedade intelectual.

Esses países querem mais atenção para a origem dos recursos naturais usados pelas grandes empresas e laboratórios na criação de produtos protegidos por patentes. Para garantir isso, brigam por um dos poucos resultados práticos da reunião ministerial da OMC, em dezembro, que estabeleceu um prazo, 31 de julho, para que os países sócios da organização decidam como compatibilizar as normas internacionais de comércio com as regras da Convenção sobre Diversidade Biológica. A Convenção regulamenta internacionalmente o uso de material da biodiversidade e conhecimentos tradicionais das populações, especialmente nos países pobres e emergentes.

Na prática, a emenda apresentada na semana passada ao acordo sobre propriedade intelectual da OMC (Trips, na sigla em inglês), por Índia, Brasil e outros países de grande biodiversidade, estabelece que as empresas desejosas de obter uma patente estarão obrigadas a revelar (disclose) a origem do material biológico ou do conhecimento tradicional em que se baseia o produto patenteado. Também terão de informar se cumpriram os requisitos locais para extração do material biológico ou uso dos conhecimentos tradicionais. E, se falharem em cumprir essas determinações, poderão até perder as patentes.

Essa medida, aparentemente burocrática, permitirá aos países traçar a origem do produto patenteado, e tomar as medidas necessárias para, se for o caso, recompensar os autores ou detentores do material que levou à descoberta digna de patente. A freqüente detenção, em aeroportos, de cientistas e mercenários tentando contrabandear espécies da flora e fauna brasileira mostra que esse não é um assunto esotérico, mas uma questão de profundas implicações políticas e econômicas.

Tão profundas, que antes mesmo da apresentação da emenda já começaram as reações contrárias, com uma força titânica principalmente nos Estados Unidos, um dos campeões na luta contra a pirataria de direitos de propriedade intelectual. Ainda em maio, o ativo presidente do Comitê de Finanças do Senado americano, Charles Grassley, ameaçou na tribuna cortar o Brasil e a Índia do Sistema Geral de Preferências (SGP), que garante a esses países redução de tarifas de importação para certos produtos nos EUA. O Brasil vende cerca de US$ 2 bilhões aos americanos sob esse sistema, sempre lembrado quando os EUA ameaçam retaliações contra a pirataria.

Brasil, Índia e outros países partem para a ofensiva A ação de Grassley é sustentada e incentivada pelos lobbies das indústrias, especialmente a farmacêutica, reunidos em instituições como a USA for Inovation. Esse lobby divulgou manifesto acusando Índia e Brasil de tentar "roubar" patentes das indústrias de remédios americana e fazer "chantagem industrial" com a tentativa de emendar o acordo de Trips.

Há, de fato, problemas operacionais para a aplicação das medidas defendidas pelos países liderados por Índia e Brasil. Como, por exemplo, identificar claramente os países de origem de determinado material biológico, para indenizá-lo pelo uso desse recurso natural? Uma planta pesquisada na Índia pode ser encontrada na China, um determinado conhecimento pode ser de origem desconhecida.

A emenda à Trips defendida pelo Brasil, Índia e outros países reconhece a dificuldade e determina que os detentores de patentes deverão corrigir suas informações, se descobrirem novas informações a respeito do material genético ou do conhecimento apropriado no desenvolvimento de seu produto. As empresas afirmam que essa exigência só torna mais caros e difíceis os processos de defesa de propriedade intelectual.

No Brasil, ainda se discute como regulamentar as normas da Convenção de Biodiversidade e empresas nacionais de cosméticos, também usuárias desse tipo de matéria-prima, temem ver seus negócios inviabilizados por exigências excessivas, como a de remuneração das comunidades de onde se extraiu determinado produto usado na fabricação de mercadorias patenteadas.

A discussão é boa, e estranhamente ausente da enorme campanha antipirataria que, meritoriamente, vem se fazendo no Brasil.

Anualmente, centenas de patentes são concedidas para medicamentos, cosméticos e outros produtos que usam material biológico extraído de países em desenvolvimento, ou até desenvolvidos a partir do conhecimento de populações tradicionais e indígenas, sem que os países de origem desses conhecimentos, ou os verdadeiros descobridores de determinadas funções terapêuticas ou cosméticas de certas plantas e produtos animais, recebam compensação pela contribuição que deram ao detentor das patentes.

Os Estados Unidos assinaram a Convenção da Biodiversidade, mas não a ratificaram até hoje. É um bom assunto para se abordar nesta semana, em que chega ao Brasil o secretário de Comércio dos EUA, Carlos Gutierrez, trazendo uma agenda em que o combate à pirataria é um dos principais pontos a discutir com o governo brasileiro. Gutierrez quer tratar, com o Brasil, de uma agenda "positiva", com medidas, entre outras, para cooperação no terreno do registro de propriedade industrial. Os europeus aceitam a idéia de levar para a OMC alguns princípios da Convenção de Biodiversidade (ainda que discordem dos efeitos práticos que Índia e Brasil querem dar a essa "harmonização" de regras). Dos EUA só se ouve a forte voz dos lobbies privados.

Seria interessante ver as autoridades brasileiras cobrarem apoio, publicamente, do emissário americano, em vez de apenas ouvirem, como como botocudos emudecidos, a conhecida pregação contra a pirataria feita nessas terras subdesenvolvidas.