Título: Escândalos têm origem em cargos de comissão
Autor: Thiago Vitale Jayme
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2006, Política, p. A10

Sanguessugas, venda de gravação secreta ao PCC, servidores sacando dinheiro das contas de Marcos Valério, deputados pegos em falsificações de notas fiscais de gasolina. Uma rápida pesquisa pela explosão dos mais recentes escândalos mostra uma Câmara dos Deputados atolada em denúncias de corrupção. Nem o presidente da Casa escapou à avalanche: o ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) teve de renunciar ao mandato depois que foi revelado que ele teria recebido propina para renovar o contrato de um restaurante.

A raiz dos problemas está na administração politizada de alguns setores da Casa e na farra na contratação de servidores sem concurso público. Sem qualquer sinal de que caminha para resolver seus problemas, o órgão continuará sendo alvo de escândalos com freqüência, até por se tratar da Casa considerada a mais transparente da administração pública brasileira.

O procurador-geral do Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, aponta diversos problemas na Câmara, todos ligados às influências políticas. "O problema aparece quando os próprios deputados alteram uma portaria e ninguém pode fazer nada quanto a essa nova norma, porque eles são os legisladores e têm esse direito", afirma Furtado, ao referir-se ao poder dos congressistas de legislar em causa própria.

O procurador lembra que o ressarcimento feito aos deputados por gastos com gasolina, por exemplo, seria ilegal em qualquer outro órgão da administração pública. Mas uma portaria aprovada pelos congressistas "dá respaldo à essa norma esdrúxula", diz. "Nenhum órgão pode ressarcir seus diretores sem critérios como se faz na Câmara. Nem que um deputado passe os 30 dias do mês inteiros andando de carro ele não vai gastar R$ 15 mil em combustível", afirmou, citando o escândalo das verbas indenizatórias para cobrir gastos com gasolina de parlamentares. Em 2005, a Câmara repassou R$ 41 milhões em reembolso a parlamentares. Alguns chegaram a entregar notas que somavam R$ 24 mil em um único mês.

Furtado reclama que as portarias são feitas na Câmara sem o órgão ter capacidade de fiscalizar os próprios funcionários e parlamentares. Em reunião da Mesa Diretora da Casa no dia 26 de abril, consultado pelo presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), o diretor-geral do órgão, Sérgio Sampaio, esclareceu que "expressivo contingente de funcionários se dedicava à tarefa do controle de despesas, mas que a fiscalização se tornava impraticável diante das peculiaridades do país", registrou a ata daquele encontro. A visão é a mesma do procurador do TCU. "Deveria ser aperfeiçoada a capacidade de fiscalização das duas Casas. Há muita capacidade de legislar e beneficiar funcionários e deputados, mas baixíssimas possibilidades de fiscalização", diz.

"Formalmente, o TCU não pode fazer nada contra essas portarias. Ninguém pode. Só é possível reclamar e criticar", afirma Furtado. "Os órgãos se submetem às normas comuns. O Congresso, como legislador, pode fazer portarias à vontade", diz. "O Banco Central, por exemplo, não pode criar um mecanismo de despesa para seus diretores dessa forma. A Câmara pode", explica.

Para Ezequiel Nascimento, presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Constas da União (Sindilegis), o TCU (que é um órgão do Legislativo) não tem vontade para enfrentar a Câmara e exigir mudanças na administração. "O TCU nunca afronta a Câmara ou o Congresso. E também nunca vi uma entidade forte, como a OAB, entrar com uma ação contra essas questões", afirma.

E é na autolegislação que mora o ponto mais grave de corrupção dentro do Legislativo: os chamados cargos de natureza especial (CNEs). "São cargos em comissão criados de forma extraordinária pelos deputados e senadores. Mas há um abuso. Hoje, há milhares de CNEs no Congresso", diz. Os CNEs são uma artimanha dos parlamentares para criar mais cargos. Um posto comissionado convencional depende de um projeto de lei a ser aprovado pelo Congresso e pelo presidente da República. Os cargos de natureza especial só dependem de uma portaria aprovada pelo plenário.

Furtado destaca a falta de capacidade de qualquer órgão interferir. "Se há previsão orçamentária e portaria que dê sustentação, nada pode ser feito. A questão é a da conveniência. Só a Câmara e o Senado podem mudar isso", diz.

Perguntado sobre os CNEs, o presidente do Sindilegis é direto: "É uma chaga, uma praga na Câmara". Hoje, a Casa tem 3,6 mil servidores efetivos, contra 3,4 mil CNEs, 13 mil secretários parlamentares e 3,6 mil terceirizados. Se os secretários parlamentares são lotados exclusivamente nos gabinetes, os CNEs são espalhados pela Câmara. "O CNE é mais versátil e, por isso, mais perigoso. Eles só têm compromisso com os padrinhos deles. O CNE é lotado nas comissões de licitação, de orçamento, no centro de informática da Casa, nas lideranças", explica Ezequiel.

O sindicalista faz relação dos CNEs com o escândalo de compra superfaturada de ambulâncias. "Nenhum dos assessores parlamentares presos era servidor da Câmara. Eram todos CNEs ou terceirizados", diz. Operação Sanguessuga da Polícia Federal prendeu mais de 40 assessores de deputados há um mês. O esquema envolvia empresas fantasmas que entravam em contato com prefeitos e negociavam a inclusão, no Orçamento da União, de emendas parlamentares para a compra de ambulâncias superfaturadas.

Furtado lembra de uma consulta feita pela Câmara ao TCU há alguns anos. "Na ocasião, fizeram consulta perguntando se poderiam ser criados CNEs para trabalharem para os deputados nos estados. O TCU respondeu que seria possível, desde que eles estivessem ligados à atividade legislativa", afirmou Furtado, e completou: "Mas quem fiscaliza a criação e o trabalho realizado por esses funcionários nos estados? Ninguém". Ezequiel Nascimento é duro com o TCU nessa questão. "Essa foi a decisão mais cretina que o TCU poderia ter", afirmou.

Com relação à ocupação dos cargos, o presidente do Sindilegis critica a forte influência política nas decisões administrativas da Casa. Quando Aécio Neves (PSDB), hoje governador de Minas Gerais, foi presidente da Câmara em 2001 e 2002, segundo Ezequiel, a política passou a ter mais influência nas questões internas. Até a chegada do tucano ao posto, a "administração era mais imune aos desmandos políticos. Aécio partidarizou as indicações dos diretores e a ingerência política passou a ser maior". O diretor-geral começou a perder poderes. O auge foi na administração de João Paulo Cunha (PT-SP), entre 2003 e 2004, quando o chefe-de-gabinete da presidência tinha mais poderes do que o diretor-geral. Os cargos mais preciosos são as diretorias com responsabilidades de realizar licitações, obras e a de controle interno.

Quando Aldo assumiu a presidência, a indicação de diretores chegou a tal nível que o diretor-geral da Câmara, Sérgio Sampaio, entregou o posto. A demissão não foi aceita e Sampaio permanece no cargo. "A Câmara tem um Orçamento de R$ 2 bilhões e cerca de R$ 500 milhões podem ser geridos livremente pelos diretores", diz Ezequiel.

Hoje, Aldo já controla vários cargos de destaque. O Valor apurou que as diretorias administrativa, de comunicação, de documentação, de apoio financeiro e de controle interno têm pessoas ligadas a ele. O PSDB tem a diretoria de material e patrimônio. O Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento é tradicionalmente do PT. O chefe da Polícia, curiosamente, ainda é remanescente do tempo da presidência de Severino Cavalcanti (PP-PE). O diretor legislativo é Afrísio Vieira Lima, irmão do deputado Geddel Vieira Lima (BA), cacique pemedebista. Ezequiel Nascimento mostra ainda a importância de se fazer parte da Mesa Diretora. "Cada membro da Mesa tem até 80 cargos indicados na Casa", afirma.

Furtado aponta outro gargalo de dinheiro público na Câmara: a hora extra. Quando há sessões extraordinárias, "o funcionário que quiser pode ficar até mais tarde, assinar o ponto e receber a hora extra". "Em qualquer local do Brasil e do mundo, só recebe hora extra quem trabalha fora do horário normal. Mas, na Câmara, um funcionário que trabalha no setor de patrimônio e nada tem a ver com as tarefas legislativas da Casa, pode receber hora extra por conta de uma votação mais prolongada", afirma.

Furtado diz, ainda, que essa questão depende da Câmara e o TCU nada pode fazer. Ele critica também o salário extra nas convocações extraordinárias. "Nesses períodos, o funcionários não fazem nada além de suas funções. E ele vai receber ajuda de custo a título de quê?"

Aldo Rebelo tem trabalhado para melhorar esse problema. Alterou o horário de assinatura do ponto de horas extra das 19h para às 20h30 em dias de sessão no plenário. Informa-se, em algumas diretorias, que ele promoveu também uma redução de 5% no custo das horas extras aos cofres da Câmara. O órgão promete divulgar o balanço da alteração.

A despeito de todas as críticas e da politização da parte administrativa, Furtado faz elogios à Câmara. Revela que as prestações de contas da Câmara e do Senado têm sido aprovadas com tranqüilidade. E as licitações auditadas têm deslizes normais como acontece em qualquer órgão público do país. "É como outros órgãos. Não há histórico de ilegalidade nem na Câmara e nem no Senado nessas questões separadas das políticas", diz.

O próprio Ezequiel Nascimento faz longos elogios à transparência da Câmara. "É o órgão mais transparente da administração brasileira. Supremo Tribunal Federal, Tribunal de Contas da União, Banco Central e até a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público da União ficam bem atrás", afirma. "E só conseguimos perceber todos os seus defeitos em função dessa transparência."

Tanto Furtado quanto Nascimento observam uma situação inusitada na Câmara. A despeito de fazerem parte do órgão mais transparente e trabalharem para aumentar essa facilidade de acesso às informações administrativas, deputados e senadores pouco fazem para melhorar a imagem da Casa e não se furtam a tomar decisões polêmicas. "É preciso vontade dos parlamentares para mudar algumas regras internas absolutamente estapafúrdias e com benefícios sem razão aos servidores", diz Furtado.