Título: Inoportuna a adoção de incentivo ao capital externo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2006, Opinião, p. A12
O período de volatilidade no mercado financeiro ainda deve continuar por algumas semanas, talvez meses, enquanto persistirem dúvidas sobre a intensidade e a duração do ciclo de aperto na política monetária nos Estados Unidos. Mas já é possível tirar pelo menos uma conclusão desses dias turbulentos: não foi a mais oportuna das idéias o incentivo tributário concedido pelo governo à entrada de investidores estrangeiros no mercado doméstico de títulos públicos.
Em fevereiro, por sugestão do Tesouro Nacional, foi editada a Medida Provisória nº 281, que concedeu ao investidor não-residente no país o privilégio de não recolher Imposto de Renda (IR) sobre os rendimentos das aplicações em títulos públicos e de Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) sobre o trânsito de recursos no mercado financeiro.
Na origem, a proposta já continha vícios, ao conceder um privilégio ao investidor estrangeiro que é negado ao poupador nacional. A exposição de motivos da MP justificou esse tratamento discriminatório com o argumento de que o estrangeiro tem "preferência por investimentos em títulos de longo prazo, principalmente prefixados ou indexados a índice de preços, características estas que estão em consonância com as diretrizes da administração da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi)".
Assim, valeria a pena abrir mão de impostos porque, ao contrário dos investidores residentes no país, os estrangeiros seriam pelas décadas vindouras parceiros ideais no financiamento da dívida pública interna, comprando papéis com vencimento em prazos tão longo quanto 2045.
Durou três meses a confluência de interesses entre o Tesouro e os capitais estrangeiros. A mera expectativa sobre juros mais elevados nos Estados Unidos levou os investidores não-residentes a um comportamento de manada, procurando se desfazer, a qualquer custo, de títulos públicos em um mercado secundário ainda incipiente, com baixa liqüidez. Os supostos parceiros na melhora do perfil da dívida pública se constituíram, eles próprios, no principal foco de instabilidade do mercado brasileiro.
Ao contrário do preconizado na exposição de motivos da MP 281, os investidores que mais ingressaram no país, ao fim e ao cabo, foram os "hedge funds" - segmento que esteve por trás de ataques especulativos nos anos 1990, começando pela Inglaterra e passando pelo Sudeste Asiático, Rússia e o próprio Brasil.
As estatísticas do BC mostram que foram investidos US$ 6,573 bilhões na dívida doméstica entre fevereiro e abril, dos quais um terço em papéis de curto prazo, com menos de um ano. E, mesmo entre os que adquiriram títulos de longo prazo, o comportamento foi típico dos capitais especulativos, com alto giro de recursos. Nesse breve período de tempo, entraram no país US$ 7,624 bilhões e saíram US$ 3,280 bilhões.
Não foi por falta de aviso que o país se expôs ao perigo. Em fins de março, o Brasil sediou em Belo Horizonte a reunião anual de governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo tema central de debate foi justamente os investimentos estrangeiros em instrumentos locais de dívida pública.
O alerta de economistas especializados em América Latina era que, após a compressão dos "spreads" dos títulos soberanos denominados em moedas fortes, os investidores estrangeiros estavam promovendo uma corrida por retornos nos mercados domésticos, sem medir adequadamente os riscos. Agiam com negligência ao injetar altas somas em mercados com liquidez estreita e sem instrumentos adequados de proteção de posições.
Obviamente, não se pretende negar aqui o papel relevante dos capitais estrangeiros para complementar a poupança nacional e para contribuir com o desenvolvimento do mercado de dívida pública. Mas é inegável que a isenção tributária, da maneira como foi decidida em fevereiro último, foi no mínimo inoportuna, ao tornar mais vulnerável a economia brasileira. Talvez o princípio mais importante na abertura da conta de capitais seja o do correto seqüenciamento, no qual o fortalecimento de fundamentos econômicos antecede o ingresso de capitais. Escancarar ao investidor estrangeiro um mercado de dívida pouco desenvolvido é colocar o carro adiante dos bois.