Título: Celeridade processual e tradição
Autor: Luciano Rolo Duarte
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2006, Legislação &, p. E2

As alterações legislativas que vêm sendo introduzidas no Código de Processo Civil (CPC) têm, por motivação, quase sempre, imprimir maior agilidade à prestação jurisdicional, tornando a resposta do Judiciário mais pronta e eficaz aos anseios da sociedade. Procuram tornar factíveis os princípios da economia processual e da eficiência no trato da coisa pública. Também a classe dos advogados já não suporta tanta morosidade e ineficiência, vendo-se em geral compelida a explicar ao cliente as infindáveis razões pelas quais a sua pretensão jurídica, procedente ou não, acaba por atravessar um verdadeiro calvário até o pronunciamento final do Judiciário.

Essa excessiva morosidade não se deve apenas a fatores relacionados à nossa disciplina processual, mas também a motivos outros, de ordem mais prática e menos teórica. Por exemplo, aqueles ligados às deficiências gerais de infra-estrutura do Poder Judiciário, tanto no aspecto humano - funcionários desmotivados, sem planos claros de carreira, sem cursos de aprimoramento e com excessiva carga de trabalho e baixos salários - quanto pela deficiência material onde trabalham, muitas vezes em prédios antigos, sem o nível adequado de informatização etc. E é justamente nesse cenário que tais alterações legislativas, feitas de modo a retalhar o código - que é um conjunto de normas as quais devem guardar coesão entre si - podem incorrer em desvios e equívocos.

As Leis nº 11.276 e 11.277, ora sancionadas pelo presidente da República, bem podem ser exemplo disso. O parágrafo 1º acrescido ao artigo 518, por exemplo, introduz uma espécie de regime de observância às súmulas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) - a denominada súmula impeditiva de recursos, uma versão mais leve, por assim dizer, da súmula vinculante. Por esse instrumento, estando a decisão de um juiz de primeiro grau em conformidade com o entendimento jurisprudencial sumulado, não poderá o juiz receber o recurso de apelação. Veja-se que isso, a despeito de romper com uma tradição jurídica, visa a atender exatamente aos princípios de celeridade e eficiência, com vistas a desafogar o Judiciário do cipoal de processos, que muitas vezes veiculam teses ou situações jurídicas idênticas ou muito semelhantes, como se dá, sobretudo, na área tributária.

Todavia, o fato de haver similitude não implica, necessariamente, em identidade de causas, fazendo com que uma decisão justa para um caso não o seja necessariamente para o outro, especialmente se abstrairmos da análise a referida área do direito, já que o dispositivo legal em questão se aplica a todas as esferas jurídicas e nem sempre é tarefa simples estabelecer, como condiciona o dispositivo, o que seja apenas matéria de direito. Isso faz crescer, naturalmente, a responsabilidade do juiz, que deverá agir "cum grano salis", ou seja, com redobrada cautela, ao enquadrar e subsumir os casos postos à sua apreciação à orientação sumulada.

O que preocupa, neste caso, é que sabidamente a magistratura vem sendo composta cada vez mais por juízes não só muito novos como também egressos de faculdades nem sempre satisfatórias. Além desses aspectos, parece de pouca técnica a introdução dessa possibilidade via inserção de um parágrafo 1º ao artigo 518, mantendo-se, porém, o sentido da redação do antigo parágrafo único logo abaixo, no acrescido parágrafo 2º, o qual estipula que, apresentada a resposta, ao juiz fica facultado, em cinco dias, o reexame dos pressupostos de admissibilidade do recurso. Ora, cabe perguntar a que recurso está o novo parágrafo 2º referindo-se: por lógica, somente pode ser ao recurso que terá sido admitido, ou seja, no caso de a sentença não estar em conformidade com qualquer súmula. No entanto, a seqüência desses parágrafos pode ensejar alguma dúvida no espírito dos operadores do direito, até porque estes se perguntarão se, diante da rejeição de plano da apelação, não teria o recorrente como se voltar contra essa decisão. É que, neste caso, encerrada estará a via recursal, inclusive com supressão do segundo grau de jurisdição. Assim também se verifica que, quando muito, a introdução da observância às súmulas deveria se dar tão-somente depois de esgotado o segundo grau de jurisdição, jamais antes. De se notar, a propósito, que o principal fator a justificar o duplo grau de jurisdição está em que os atos estatais, em um regime democrático, demandam um sistema de controle.

A introdução da observância às súmulas deveria se dar depois de esgotado o segundo grau de jurisdição Com a súmula impeditiva de recursos, contudo, estará o Judiciário exposto a pressões no sentido de se ter a formulação de súmulas que contemplem posições políticas, esvaziando, por conseqüência, a possibilidade do controle interno de seus atos, pela via recursal.

O caso do novel artigo 285-A, que diz da possibilidade de o juiz dispensar a citação do réu e proferir sentença desde logo em casos em que, não envolvendo matéria fática, sejam idênticos a outros já julgados no juízo, também procura constituir-se em instrumento para a agilidade dos processos. Contudo - e para falar o menos - vem carregado o seu comando normativo de inconsistências conceituais que podem levar a incongruências, quando não ao engessamento da atividade jurisdicional.

É que o termo juízo designa, na ciência processual, o que, em linguagem corrente, corresponde à vara (ou ofício judiciário) em que lotado este ou aquele magistrado. Ora, impor uma uniformização de entendimentos em razão de decisões havidas no juízo, e não tomadas por este ou aquele juiz, pode não só gerar dúvida quanto à correta interpretação do dispositivo, como implicar em vulneração à liberdade e autonomia de que goza cada um dos magistrados e até, em uma palavra, em violação ao princípio do juiz natural. O juiz auxiliar e o substituto, por exemplo, deveriam seguir à risca o que tenha decidido o juiz titular da vara em outro caso, ainda que, em tese, um caso idêntico? Não representaria isso uma total "capitis deminutio" de suas funções e prerrogativas? Uma subversão, afinal, do princípio do livre convencimento do juiz? Essas questões poderão ensejar, enfim, o questionamento judicial de tais dispositivos, constituindo-se um rico manancial para novas demandas, em prejuízo da finalidade das inovações trazidas com essas leis.

Boa inovação, por outro lado, diz da possibilidade ora expressamente prevista no parágrafo 4º introduzido ao art. 515 no sentido de o tribunal determinar a renovação de atos processuais, ao verificar a existência de nulidades sanáveis, com o prosseguimento do julgamento da apelação.

Como última observação, e sem pretender fazer trocadilhos tolos, talvez esteja em tempo de o país levantar-se para a discussão das grandes causas, em vez de continuar na famigerada práxis dos arranjos de conveniência.

Luciano Rolo Duarte é advogado do escritório Advocacia José Del Chiaro