Título: A privatização, o consumidor e o produtor
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2004, Opinião, p. A11

Os anos 90 representam a década das reformas liberais, nos quais abertura da economia, estabilização e privatizações ocupam lugar de destaque. Esses elementos são considerados avanços pela maioria dos economistas do mundo. Agora quais seriam os impactos dessas reformas no cidadão comum? Analisamos aqui os dois últimos Censos demográficos do IBGE sob as óticas do consumidor e do produtor. Em particular, as mudanças no acesso a serviços públicos e no emprego, ocorridas nos setores de atividade ligados à provisão de infra-estrutura, que passaram pelo processo de privatização na última década. A evolução do emprego na extração de petróleo e gás natural, produção de energia elétrica, produção e distribuição de gás através de tubulações, transporte ferroviário e telecomunicações são detalhadas aqui. A intensidade de criação/destruição de empregos difere marcadamente de um setor de atividade para outro. Os únicos setores onde houve crescimento de emprego foram os de produção e distribuição de gás e telecomunicações. O aumento de postos de trabalho nas telecomunicações foi bem mais significativo do que na produção e distribuição de gás em termos absolutos, porém em termos relativos, a produção e distribuição de gás apresenta maiores valores devido ao nível de emprego incipiente desde 1991. A maior queda do emprego, tanto em termos absolutos como relativos, ocorreu no setor de transporte ferroviário, onde ocorreu redução de mais de 70 mil postos de trabalho de 1991 a 2000; em termos relativos, isso representa queda de aproximadamente 70%. Observamos a variação na renda média dos ocupados nos dois períodos da análise como "proxy" da mudança na qualidade do emprego nos setores que passaram pelo processo de privatização. As melhorias de produtividade, devido ao processo de privatização, geralmente ocasionam uma elevação dos salários e outras formas de remuneração dos trabalhadores que permaneceram ou passaram a ser empregados nas empresas privatizadas. A renda média dos ocupados brasileiros, deflacionada pelo INPC, cresceu cerca de 23% entre 1991 e 2000, isto é, um crescimento de R$ 125,07. Nos setores de interesse, as maiores variações ocorreram nos setores de telecomunicações e extração de petróleo e gás natural, e a menor no setor de produção e distribuição de gás através de tubulações. No setor de telecomunicações, a renda média dos ocupados cresceu quase 24%, ou seja, cerca de R$ 211,00; no setor de extração de petróleo e gás, 19,1% (R$ 277,90); e a queda na renda no setor de produção e distribuição de gás passou de 50%. O acesso a serviços públicos tem mudado acentuadamente na última década em função do processo de privatização. Os serviços públicos analisados são aqueles encontrados nas pesquisas domiciliares: energia elétrica, telefone, rede geral de água e esgoto. Buscamos isolar fatores de mudança no lado da oferta dos serviços públicos daqueles de demanda, função principalmente dos fatores geográficos e sócio-econômicos.

A privatização trouxe boas notícias para o consumidor em geral, e outras não muito boas para os empregados dos setores privatizados

Dentre os serviços públicos em questão, o que mais cresceu entre os anos de 1991 e 2000 foi o acesso à telefonia fixa. Em 1991, cerca de 25 milhões de pessoas possuíam acesso à telefonia fixa; já em 2000, 63 milhões, ou seja, um aumento de 145% do número de pessoas com linha telefônica, enquanto o crescimento da população total foi de apenas 15,7%. Analisando o percentual de acesso aos serviços públicos de interesse, observa-se que o acesso a telefone ainda apresenta a menor porcentagem (37,1%) quando comparado aos demais serviços. No outro extremo está o acesso à eletricidade, que em 2000 atinge 92,7% da população total brasileira. Já o acesso à rede geral de água foi de 75%, e o acesso à rede geral de esgoto atingiu quase metade da população brasileira. Quem se beneficiou mais? Os custos dos serviços públicos, como eletricidade, são muito altos em aglomerados subnormais, devido principalmente à dificuldade de cobrança. No caso da eletricidade, existem evidências concretas da magnitude de ligações clandestinas de energia, os chamados "gatos", cerca de quatro vezes maior do que nas demais áreas. Nesse caso, a restrição maior está no faturamento dessas áreas, gerando efeitos adversos na capacidade de oferta das demais áreas. Mesmo assim, observa-se que a taxa de acesso em todos os serviços da análise nos aglomerados subnormais tiveram aumento entre os anos de 1991 e 2000. O acesso a telefone aumentou cerca de 11 vezes, e o acesso à rede geral de esgoto, 2,5 vezes. A privatização facilitou o acesso a serviços a quase todas as faixas de renda da população, porém em diferentes graus. As classes com maiores níveis de rendas foram as mais favorecidas. De todos os serviços, eletricidade foi o que apresentou maior equidade de distribuição. Em 2000, quase todas as faixas já alcançavam taxas de acesso superiores a 90%. Por outro lado, a privatização das empresas telefônicas foi a menos igualitária. Apesar de beneficiar todas as classes, alcançou em maior escala a população de alta renda. Entre os 10% mais ricos da população, apenas 33% tinham acesso em 1991, em comparação a 89% em 2000, atingindo 15 milhões de pessoas. Acesso a saneamento básico também cresceu com as privatizações, tanto no abastecimento de água quanto no acesso a esgoto. Em 1991, o acesso à rede geral de esgoto atingia menos de 50% da população em todos os décimos de renda, situação diferente da apresentada em 2000. Na perspectiva do consumidor, os anos 90 não foram uma segunda década perdida. Mesmo durante a chamada crise de desemprego, observamos avanços no acesso a bens e serviços. A idéia de crise parece se adequar mais ao caso dos produtores locais. Alguns alegam que o problema do desemprego é consequência direta da adoção de reformas liberais. Outros argumentam que o problema se deve à contra-reforma promovida pela Constituição de 1988, e uma certa timidez dos ajustes posteriores. Todas essas questões importam na decisão de recuar, manter ou transformar a agenda de reformas.