Título: Ainda o superávit primário e o PPI
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 06/06/2006, Brasil, p. A2

É impossível ignorar a armadilha que impede a economia brasileira de voltar a um crescimento robusto e persistente, com equilíbrio interno (taxa de inflação parecida com a de seus parceiros comerciais) e externo (relativo equilíbrio do balanço em conta corrente). De um lado, temos a quase impossibilidade política de aumentar a carga tributária já excessivamente elevada (veja-se a violenta reação da sociedade quando da tentativa de aprovação da Medida Provisória 232). De outro, temos o elevadíssimo nível da relação dívida líquida/PIB que já não permite o aumento do endividamento sem graves conseqüências para a política fiscal e a taxa de crescimento do PIB (veja-se a dramática reação do "mercado" quando aquela relação se aproxima de 56%).

Não podendo extrair mais recursos da atividade privada e não podendo aumentar o endividamento, o governo é obrigado a produzir "superávits" primários que induzam o mercado a acreditar que a relação dívida líquida/PIB vai permanecer constante ou declinar suavemente. Como nos últimos 20 anos os governos não foram capazes de controlar as despesas correntes, a variável de ajuste tem sido uma redução sistemática do investimento público.

No nosso último "suelto" nesta mesma coluna (30 de maio) chamamos a atenção para o fato da taxa de crescimento do PIB revelar grande importância na dinâmica da relação dívida/PIB e, simultaneamente, para o reconhecimento que o investimento público cria enormes externalidades positivas para os investimentos privados. Sugeriu-se a possibilidade de uma pequena transação bem sucedida entre o superávit primário "necessário" e o nível de investimentos públicos na forma do Plano Piloto de Investimento (PPI), como foi reconhecido pelo próprio FMI. No fundo, a idéia é que um pequeno acréscimo do investimento público, em setores absolutamente críticos, aumentaria substancialmente a produtividade do investimento privado, elevando o crescimento do PIB. Em outras palavras: a pequena redução do superávit primário aplicada como investimento, produziria um ganho de produtividade dos investimentos privados que aumentaria o crescimento do PIB. Isso manteria (ou mesmo reduziria) a relação dívida líquida/PIB a despeito do menor "superávit primário".

Afirmamos, então, que se tratava de uma questão empírica. O que parecia evidente é que a hipótese teria maior probabilidade de ser confirmada, quanto maior fosse o uso do aumento de receita proveniente do crescimento do PIB na forma de poupança do governo (investimento mais superávit primário) e não em gasto corrente.

No dia seguinte um leitor chamou a nossa atenção para um sofisticado e competente trabalho dos economistas Pedro Cavalcanti Ferreira e Carlos Hamilton Vasconcelos Araújo (ambos da Fundação Getúlio Vargas), "Sobre os efeitos econômicos e fiscais dos investimentos em infra-estrutura no Brasil", produzido para o Banco Mundial. Ele ataca e resolve justamente parte da "questão empírica" a que nos referimos.

Os argumentos e o método utilizados no texto são convincentes. Eles mostram que os investimentos públicos diminuíram continuadamente nas últimas duas décadas, com impactos muito importantes sobre o estoque de capital que constitui a nossa infra-estrutura (transporte, energia, portos etc.) com conseqüências sensíveis sobre o crescimento. O instrumental econométrico é adequado para investigar as relações de longo prazo entre a evolução do PIB e infra-estrutura. O resultado foi usado para explicitar a dinâmica de curto prazo entre as variáveis.

Sociedade não permite o aumento de tributos O que importa salientar neste momento são algumas de suas conclusões:

1ª ) que tanto no curto como no longo prazo, o impacto do investimento na infra-estrutura é relevante para o crescimento;

2ª ) que, se inteiramente financiado por endividamento, ele pode levar a um aumento da relação dívida líquida/PIB, o que, dado o seu já alto nível, pode criar problemas para a credibilidade da política fiscal e

3ª ) que muito provavelmente alguns investimentos públicos "pagam-se por si mesmos": o valor atual do aumento da tributação e os ganhos de capital associados aos novos investimentos são, no longo prazo, maiores do que os custos envolvidos.

Isso sugere que talvez alguns poucos e bem escolhidos investimentos do Plano Piloto de Investimento (PPI) podem ser "transacionados" com uma pequena redução do déficit primário, aumentando a eficiência da economia sem comprometer a relação dívida líquida/PIB. Isso reforça os argumentos do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e deveria relativizar o mau humor do sistema financeiro com relação à transação.