Título: Vitória de Cristina deve reunificar os peronistas
Autor: Felício, Cesar
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2011, Internacional, p. A9

A reunificação do peronismo depois de dez anos de fragmentação deverá ser a primeira consequência da reeleição ontem da presidente argentina Cristina Kirchner. A presidente conseguiu 53% de votos, segundo o resultado oficial com 16% dos votos apurados. O adversário mais próximo, o socialista Hermes Binner, governador da Província de Santa Fé, conseguiu 17%. O deputado Ricardo Alfonsín, da União Cívica Radical, obtinha 13%, seguido pelos dois dissidentes peronistas, Alberto Rodríguez Saa, com 7% e Eduardo Duhalde, com 6%.

O resultado - que registra a maior diferença entre o primeiro e o segundo colocado na história da Argentina - deve abrir caminho para que Cristina assuma a presidência do Partido Justicialista (PJ), a sigla oficial do peronismo, que desde 1999 não escolhe um candidato único à Presidência em função de suas divisões internas. Na Argentina, é permitido a candidaturas por partidos ou por alianças, o que torna possível mais de um candidato filiado ao PJ.

Atualmente, o presidente da sigla é o governador da Província de Buenos Aires, Daniel Scioli, também reeleito ontem. Mas Scioli ocupa o cargo de forma interina, em razão da morte do ex-presidente Néstor Kirchner, marido de Cristina, há exatamente um ano.

Os dissidentes peronistas, como o ex-presidente Eduardo Duhalde e o governador da Província de San Luis, Alberto Rodríguez Saa, saíram humilhados da eleição e tendem a refluir da posição oposicionista. O próprio Duhalde admitiu, dias antes do pleito, a hegemonia da presidente. "No peronismo, quem tem o poder, tem o controle do partido", disse.

Em 2007, Cristina se elegeu para suceder o marido tendo um vice dissidente da oposição e também enfrentando dissidentes no PJ, como agora. O voto total peronista há quatro anos atingiu 68%, sendo 45% dado a Cristina, 16% ao ex-ministro Roberto Lavagna, de origem peronista, mas que concorreu com apoio da UCR, e 7% a Adolfo Rodríguez Saa. A se confirmar os resultados, a opção peronista oscilou agora para 66% dos sufrágios, sendo apenas 13% dados aos não kirchneristas.

O peronismo é a forca política que governou a Argentina em 32 dos últimos 65 anos. No tempo restante, ditaduras militares estiveram no poder por 17 anos e governos civis não-peronistas administraram por apenas 16 anos. O movimento foi formado por um militar, o coronel Juan Domingo Perón, em 1945, quando assumiu o Ministério do Trabalho e recebeu o apoio de líderes sindicais para concorrer à eleição presidencial do ano seguinte.

Perón criou uma ampla rede de proteção social no país, estabeleceu alianças com caciques regionais e setores conservadores e retirou espaço político de forças opositoras e da imprensa. Dentro de quatro anos, a era de Néstor e Cristina irá se igualar em duração a de Perón e sua terceira mulher, Isabelita: ambos os períodos terão durado doze anos. Caso seja considerado o período ininterrupto, a hegemonia do casal Kirchner é a maior na história argentina desde 1930.

Os regimes militares e civis que se alternaram enquanto Perón esteve no exílio, entre 1955 e 1973, retiraram direitos sociais e fizeram com que o sindicalismo mantivesse o peronismo vivo e dividido entre extremistas de esquerda e de direita. A ambiguidade marca a corrente até hoje.

"O peronismo representa o sonho de muitos, mas não um sonho coletivo. Os eleitores podem apoiar Cristina por ela ser contra o aborto ou por ela ser a favor do casamento homossexual. Cabe tudo no apoio, mas são expectativas que se confrontam", comentou na última quinta um especialista no tema, o historiador Ricardo Sidicaro, autor de "Os três peronismos".