Título: Crescimento traz tesouro do passado
Autor: Adeodato,Sergio
Fonte: Valor Econômico, 24/10/2011, Especial, p. G4

As obras de transposição do rio São Francisco, iniciadas há quatro anos, têm como objetivo levar água às regiões mais secas do Nordeste e reduzir a miséria da região. Mas a serventia dos canais que estão sendo abertos sertão adentro, ao custo total de R$ 6,9 bilhões, vai além de matar a sede da população e irrigar a terra para a agricultura.

A obra está desvendando a existência de um tesouro arqueológico capaz de elucidar, entre outros pontos, a questão das mudanças climáticas do planeta. O centro das atenções está no município de Salgueiro, em Pernambuco, onde arqueólogos descobriram recentemente fósseis de preguiças gigantes nas imediações da área a ser alterada pelas máquinas.

Ossadas estão sendo resgatadas na Lagoa de Uri de Cima, que seca completamente na ausência de chuvas. "Como tinham seis metros de altura e eram pesados, esses animais certamente ficaram presos na lama em algum período de maior estiagem", explica a pesquisadora Ane-Marie Pessis, da Fundação Museu do Homem Americano (FUMHAM).

Os cientistas investigam agora a datação exata dos fósseis - iniciativa importante para novas conclusões sobre a evolução do clima e sobre a coexistência do homem com a megafauna. Sabe-se que as preguiças gigantes e demais animais de grande porte habitaram partes do território brasileiro e da América do Sul no início do período geológico do Quaternário, há mais de 12 mil anos. Na região de Salgueiro também foram encontrados fósseis de toxodontes, animais que tinham hábitos terrestres e aquáticos e pesavam em torno de uma tonelada. A descoberta de fósseis da megafauna, confirmando pesquisas já realizadas em outras partes do interior nordestino, revela que o sertão tinha no passado uma floresta densa e fartura de água - bem diferente da situação dos dias de hoje.

A partir de varredura com imagens de satélite, os pesquisadores localizaram ao longo do futuro percurso da água captada do São Francisco as áreas mais propícias à existência de fósseis. O campo de investigação abrange uma faixa de 200 metros de largura em ambos os lados dos canais da transposição. Conforme determina o licenciamento da obra, o trabalho será ampliado para 2 km a partir de cada margem. Próximo à lagoa alvo das atuais escavações, onde trabalham 26 técnicos, há pinturas rupestres apresentando temas que dão pistas sobre a relação dos antepassados com o meio ambiente e os animais.

"O Brasil tem ótimo instrumento jurídico, baseado nas recomendações da Unesco sobre patrimônio arqueológico, mas precisa ser aplicado na prática", adverte a pesquisadora, destacando o arranjo institucional montado para viabilizar a pesquisa ao longo de 1,1 mil km de canais da transposição. Coordenada pela FUMDHAM com verba repassada pelo Ministério da Integração Nacional ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a iniciativa envolve diferentes instituições voltadas para o estudo do semi-árido.

No Sul do Ceará, por exemplo, próximo a Juazeiro do Norte, por onde também passará a água do São Francisco, grupos de pesquisa descobriram sítios arqueológicos com cerâmicas que retratam grande diversidade de culturas ancestrais.

Ao final das pesquisas, há possibilidade de todo o acervo, tanto aquele que está sendo resgatado quanto o que permanecerá protegido em seus locais de origem, inspirar novos circuitos turísticos, gerando renda. "Estamos convencidos de que a aliança entre obras de infraestrutura e pesquisa científica é promotora de desenvolvimento", enfatiza Pessis. Além disso, ela completa, "os resultados devem contribuir para entender melhor o meio ambiente e refletir sobre os limites do crescimento econômico".

Fósseis e demais peças encontradas nas escavações são instrumentos de educação patrimonial, com potencial de promover auto-estima e cidadania.

Em uma região que hoje sofre com a seca, saber que a antiga paisagem era úmida e coberta por floresta é motivo de reflexão. Na opinião de Pessis, a realidade atual da convivência com o clima árido não pode ser apagada da memória depois que a obra da transposição levar água em abundância para toda aquela região. "É preciso construir um memorial da seca, juntado as peças que contam a evolução do clima", propõe a arqueóloga Ane-Marie Pessis. (S.A.)